Decisão do Vaticano traz à tona a história da mulher em cuja boca uma hóstia dada pelo padre Cícero teria se transformado em sangue vivo
Vandeck Santiago(texto)
A beata Maria de Araújo era negra, pobre e analfabeta. A conheciam na cidade como “Maria Preta”, lavadeira, costureira e doceira. Quando morreu, aos 50 anos, o maior líder religioso do Nordeste fez questão de enterrá-la dentro de uma igreja. Anos depois, porém, seu jazigo foi aberto. O corpo foi retirado e nunca mais encontrado. Um padre escreveria que ela não passava de “uma negra ignorante, que ingeria bons goles de cachaça, após fingidos êxtases”. Mas uma decisão do papa Francisco, divulgada no última dia 13, ilumina o conhecimento sobre a vida da beata e o papel dela na história.
A decisão do papa saiu nos jornais: o Vaticano perdoou o padre Cícero Romão Batista, após punições aplicadas entre 1892 e 1916. Ele foi acusado de incentivar fanatismos, de alardear falsos milagres e de divulgar embustes. É aí que entra a beata Maria de Araújo. Em 1º de março de 1889 ela assistia a uma missa do padre Cícero, no Juazeiro do Norte (CE), e aconteceu um fato de consequências extraordinárias. A hóstia posta na boca na beata pelo padre teria se transformado em sangue vivo. “Teria”, não, conforme depoimentos dados por pessoas que disseram ter visto o fenômeno (depoimento dados após juramento sobre a Bíblia): transformou-se mesmo. “O episódio se repeteria por meses a fio, sempre às quartas e sextas-feiras”, escreveu Lira Neto, autor de Padre Cícero – poder, fé e guerra no Sertão (2009, Companhia das Letras), a mais consistente biografia já escrita sobre o religioso.
No inquérito aberto pela Igreja, padre Cícero chegou a ir a Roma, defender-se das acusações. O veredito, no entanto, foi de condenação. Retiraram-lhe o direito de ministrar sacramentos e rezar missas. E o obrigaram a manter “eterno silêncio” sobre a hóstia que havia se transformado em sangue vivo.
Padre Cícero foi perdoado – o que isso tem a ver com a beata Maria de Araújo? Simplesmente tudo. “Com o perdão e reconciliação, fica entendido que padre Cícero na verdade não errou. Todas as punições foram suspensas. A igreja entendeu que a pregação dele estava no caminho certo e a devoção a ele continuou crescendo durante todos esses anos”, disse o chanceler da diocese do Crato, Armando Lopes. Ou seja: para a Igreja não houve um embuste. Ou seja, parte 2: a negra, pobre e analfabeta Maria de Araújo não foi protagonista de uma farsa.
O raciocínio nos leva à etapa seguinte da decisão do papa: a beata também precisa ser perdoada. Um relatório da Santa Sé de 1898 a trata como “pseudomística, fabricante de milagres e inventora de imposturas” – acusações que não se sustentam diante da decisão atual do papa de perdão a padre Cícero. O brado pelo perdão da beata ecoou do biógrafo Lira Neto. “Se a Igreja e o papa Francisco querem mesmo absolver o padre Cícero”, diz ele, “não esqueçam da beata Maria de Araújo, o elo mais fraco de uma injustiça histórica. Uma mulher a quem não foi dado o direito sequer de ter os ossos em um túmulo. Um personagem que a história oficial apagou”. Com a autoridade de quem estudou a história de padre Cícero durante mais de 10 anos, Lira Neto atesta que “se não existisse Maria de Araújo, não teria existido o padre Cícero”, pelo menos como o conhecemos hoje, porque a existência dele “é absolutamente decorrente da existência da beata”. Por uma questão de justiça, o perdão ao padre gera a necessidade de estender a medida à beata.