Numa hora qualquer perto do Natal, ele chega e faz aflorar sentimentos que remetem ao melhor da condição humana, nos levando a refletir sobre como a vida poderia ser melhor se a solidariedade e a delicadeza fossem práticas diárias
Luce Pereira (texto)
GREG/DP (arte)
Nenhuma teoria, até hoje, me fez o imenso favor de explicar onde mora, de onde vem e por que é certo que o tal “espírito natalino” consegue o milagre de amolecer as pessoas, nesta época. Pessoalmente, atravessando um ano cheio de atribulações nos campos mais importantes da vida, achei que desta vez a soma das dificuldades criaria em mim tal barreira de indiferença que ele não conseguiria transpor. Eu estava certa disso até ontem, quando percorri pela enésima vez os corredores de uma gigantesca loja de material de construção – endereço com o qual passei a ter impressionante intimidade, nos últimos seis meses – na tentativa de concluir reforma radical em minha casa, até esta data, com ares de não terminar nunca.
O cidadão comum deve saber o que isto representa, porque o segmento de prestação de serviço, no país, se configura possivelmente como uma das razões (indiretas) que mais contribuem para a ampliação do universo de cardíacos. Mestres de obras e pedreiros, creio eu, mantêm entre si códigos de cumplicidade de tal forma eficientes que a obra não anda, mas o rol de desculpas de cada um para encobrir as faltas do outro se aperfeiçoa a ponto de parecer peça de oratória. Fornecedores, estes então se superam na arte de descumprir prazos, sem falar nas idas e vindas do pobre proprietário a fim de garantir os itens necessários ao andamento do trabalho.
A promessa era terminar em dois meses, mas não por falta de aviso dos amigos atravessei o sexto sem previsão do dia exato em que estarei de volta. Até quarta-feira, achava-me assim: indo de um lado a outro, nos ambientes cobertos por pó de gesso, a manifestar visivelmente meu desagrado com a demora. Àquela altura, porém, já não havia mais bate-boca, só eu falava – e falava sem parar. Vez por outra me passava pela cabeça que estresses têm o poder de reduzir a cordialidade à condição de conhecida distante, mas estes lapsos de lucidez não se sobrepunham à “fúria”. Eu soltava fogo pelas ventas ao mais leve pensamento de que, não fôra o pouco empenho e a baixa produtividade, este Natal poderia ser outro: no ambiente renovado estaria minha árvore cheia de bolinhas coloridas, pisca-pisca (sem medo do rótulo de cafonice), o presépio (com animais e tudo), amigos brindando o encerramento de um ciclo difícil e eu orgulhosa de ter sobrevivido. Então a frustração me levava a nutrir pensamentos absolutamente inadequados para a época, sempre que via passando o mestre de obras.
Enquanto realizava as buscas pelos corredores da loja, com o carrinho quase cheio, fazia uma equação mental do tempo que faltava para concluir a tarefa e o pouco que tinha para dar conta de outros tantos afazeres, considerando ainda o trânsito de doer. Ufa. Depois de tudo pago, já ia voar do caixa para a garagem do edifício quando o coral formado por funcionários começou a cantata: “Noite feliz, noite feliz …” Então a música arrastou meus olhos para a árvore de natal, o pisca-pisca iluminou lembranças e os pacotes foram indo para o chão. Percebi a leveza das pessoas que prestavam atenção no repertório e, de repente, o automatismo que me moveu nos últimos tempos deixou de fazer sentido.
Ontem fui na obra levar espumantes e algum dinheiro para o pessoal passar melhor estes dois dias. Parecia uma pessoa devolvida à calma, olhando para os homens com roupas, mãos e rostos sujos de branco, mas animados ante a perspectiva de viver uma noite divertida e um dia de descanso. Depois olhei para o apartamento, disse que estava ficando do jeito que imaginei e fui embora na companhia do “espírito natalino”. Leve como o primeiro sorriso do Menino que aniversaria hoje.
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