Sujismundo

Cerca de 45 anos depois da mais popular campanha contra a sujeira, o brasileiro continua jogando lixo na rua e achando que o problema não é dele.

Vandeck Santiago (texto)
Samuca (arte sobre imagem da internet)

Em que momento nós adquirimos o mau hábito de jogar lixo pela janela do carro ou do ônibus, ou na rua enquanto caminhamos, ou depois de consumir algo na praia?… Por que fazemos isso se todos sabemos que é um ato condenável, uma agressão ao lugar onde vivemos? Trata-se de um comportamento que não faz distinção de classe social – o lixo pode ‘voar’ tanto de dentro da janela de um ônibus quanto de um automóvel de luxo, a pessoa que joga no chão o palito de picolé (ou o resto de qualquer coisa) pode vir de uma família economicamente humilde ou de uma abastada. Os exemplos estão praticamente por todo lugar – nos cinemas, nos clubes, nos estádios, na rua, nas calçadas, nos parques, na frente das igrejas, nas praias. Será que estamos mesmo condenados a conviver com uma legião de Sujismundos, aquele popular personagem de propaganda dos anos 1970, que espalhava sujeira por onde passava?
Esta semana chamou atenção o gesto do ex-jogador da Seleção Brasileira Rivaldo e de familiares e amigos dele, que chocados com a quantidade de lixo numa praia de Pernambuco, fizeram uma espécie de mutirão para limpá-la. Um gesto elogiável, não só pela ação em si mas por sua reverberação, que ressoa como um chamado à consciência. É claro que os governantes têm a responsabilidade da limpeza pública, e muitos não cuidam da área como deveriam, mas isso não tira a responsabilidade de cada um de nós.
Os hábitos são rotinas que vamos consolidando ao longo de anos, explica Charles Duhhig, autor de O Poder do hábito: por que fazemos o que fazemos na vida e nos negócios (Objetiva, 2012). Depois de estabelecidos, tornam-se cada vez mais difíceis de largar, e ficam automáticos. Há um gatilho que o detona e faz a pessoa praticá-lo (será que a janela do ônibus e do carro é o gatilho de quem joga coisas na rua quando está no veículo?…). Duhhig era um destacado repórter investigativo do New York Times quando escreveu este livro, que lhe consumiu 10 anos de pesquisa e entrevistas com psicólogos, cientistas, publicitários e sociólogos.
O que chamou sua atenção para o caso foi observação feita durante cobertura dos conflitos no Iraque. Ele percebeu que um oficial do exército dos EUA conseguia controlar e até evitar confrontos entre grupos políticos e religiosos, a partir da manutenção de um hábito. O oficial percebera que as brigas seguiam um padrão: primeiro, muitas pessoas se encontravam em um determinado espaço público (mesquitas, praças etc.), não necessariamente para promoverem conflitos. Segundo, quando tinha muita reunida, surgiam ambulantes vendendo comida e água. Terceiro, após horas de tensão, bastava um empurrão para desencadear o conflito generalizado. O que fez o oficial? Proibiu que os ambulantes circulassem naqueles locais. Como não tinham o que comer e beber, as pessoas voltavam para casa antes do anoitecer, como de hábito. Resultado: os conflitos eram evitados.
O mau hábito de jogar lixo nas ruas é algo já bastante arraigado entre nós. Para enfrentar o problema, a campanha mais bem sucedida em termos de recall foi a do Sujismundo, nos anos 1970, durante o governo militar. O personagem foi criado pelo publicitário Ruy Perotti, sob o slogan “Povo desenvolvido é povo limpo”. Desde então tivemos outras campanhas publicitárias, ações de governo, iniciativas das escolas, leis estabelecendo multas para quem joga sujeira na rua, reportagens, artigos indignados, depoimentos de especialistas, o escambau – e ainda estamos aqui, hoje, encontrando praias tão sujas a ponto de fazer com que um atleta famoso e seus familiares peguem vassouras e sacos para limpá-las… Cerca de 45 anos depois, a dolorosa constatação é que os sujismundos ainda vivem, e são muitos.