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“Estava resolvida a encarar os fatos, o que significava desistir de dar algum crédito aos rituais de passagem de ano”.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Logo no começo da última semana do ano ganhei umas romãs. Seria para, ao comê-las durante a “virada”, entrar em 2016 com os caminhos abertos, longe das pedras que feriram além do esperado. Olhei-as detidamente mais pela beleza do que pela função que supostamente teriam e pensei apenas em como é bom vê-las em dezembro balançando nos galhos finos e fazendo discreta sombra no quintal da casa, à espera dos ansiosos por alguma sorte. Eu nunca consegui enxergar romãs e lentilhas como amuletos, somente porque a lógica e a realidade falam mais alto: se semeamos vento, colhemos tempestade – diz a música, inclusive – e não me constava, àquela altura, que nós brasileiros teríamos crédito, bônus, colheita à vista. Foi um ano de tropeços e pernadas, cheio de equívocos e sentimentos pesados, como então alguma pobre fruta ou mísero grão poderia anular o efeito daquele desmantelo todo?
Não sei, não sou do tipo pessimista por nada, mas tem horas que a esperança balança, mesmo a dos brasileiros, conhecida pela teimosia. De qualquer forma, guardei a romã. Tudo que é dado com a melhor das intenções pode não produzir facilidades, mas traz em si a energia boa do carinho. No fim das contas, a experiência (e só ela) permite que acessemos uma espécie de filtro pelo qual já não passam ilusões comprovadamente ridículas e então fica difícil acreditar na eficiência dos velhos rituais. Se me fosse dada a coragem necessária para colocar em um lado da balança as romãs e as lentilhas que comi nos 31 de dezembro já vividos e no outro os ganhos derivados da tarefa, poderia até acreditar na ocorrência de efeito contrário. Mas, é lógico, se as coisas não andaram às mil maravilhas não pode ser por nada exceto pela combinação de fatores lógicos: cabeçadas, passos errados, escolhas mal feitas.
Enfim, estava resolvida a encarar os fatos, o que significava desistir de dar algum crédito aos rituais de passagem de ano. Com ou sem a “dieta da sorte”, nada mudaria (como até hoje não mudou, ao menos na proporção da aposta feita): o primeiro de janeiro iria amanhecer preguiçoso, as ruas sem trânsito, as areias da praia com bêbados dormindo ao lado de restos de oferenda, o peso das promessas feitas, depois a certeza de que o saldo da intimidade com o consumo não demoraria a bater à porta. Recentemente me ocorreu que a esperança que só espera morre de esperar – e parece ser deste mal que sofre a maioria. Tem fé em que romãs, lentilhas, incensos, querubins e patuás farão o imenso favor de tornar a vida mais leve e agradável, esquecidos de que o dolce far niente não é para ingênuos e sonhadores, mas para gente que passou a vida atracada com os leões do cotidiano.
Creio que nunca ponderei tanto e comi tão pouco durante uma virada de ano. A romã ainda está ali, intacta, rindo da minha ingenuidade de tantos anos; os bêbados na areia, também (semimortos entre restos de oferenda), assim como o silêncio previsível das ruas, a preguiça e a consciência do preço dos excessos com o cartão de crédito. Depois virá o carnaval, a vida pra levar – e é tudo. Mas bem que alguma alma caridosa poderia me fazer um café bem quentinho, agora, porque hoje não é dia de realidade. Hoje, não.