Em FocoHomenagem do ator à mãe vai abrir temporada 2016 do Janeiro de Grandes Espetáculos, no Teatro de Santa Isabel, e deve ser uma das peças mais concorridas do festival.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Estou no médico, o telefone toca, não reconheço o número e de qualquer forma não atenderia, pois a hora não ajuda. Já na redação lamento, pois viria a saber que era a repórter encarregada de entrevistar Matheus Nachtergaele tentando me transmitir um recado: ele gostaria de um exemplar do livro Essa febre que não passa, pois havia cedido o único que tinha. Minha cabeça voltou para uma noite de abril de 2006, no Teatro de Santa Isabel, quando o ator subiu ao palco para ler quatro dos dezessete contos, durante a festa de lançamento. Concentradíssimo, chorou algumas vezes enquanto fazia uma leitura irrepreensível e de lá de cima partilhava comigo a emoção. Naturalmente, são memórias especiais e cuidadas com carinho, pois ali vi de perto não só o artista genial como a pessoa rara. Por pura bondade, estava vestido com a camiseta do evento quando apareceu bem cedinho, na frente do teatro, para gravarmos entrevista pedida por uma emissora de televisão.
Independentemente da experiência pessoal, não é alguém que se possa esquecer assim, num piscar de olhos. O talento dele não deixa. Nem a personalidade forte, desconectada do que não é essencial ou demasiadamente humano; um sujeito que consegue fazer da arte o caminho para não se perder do começo, do primeiro fio, embora o que as raízes tenham de terno também tenham de torturante. E é justamente o tal fio essencial que o traz de volta ao Recife, cidade já tão íntima, desde sempre inclinada a vê-lo como um semelhante, como se ele tivesse conquistado direito natural de poder ser confundido com um folião sem juízo, daqueles só vistos por estas bandas mesmo. A propósito, a urgência da folia passa longe do silêncio que busca para mergulhar, através de poemas da mãe, em um começo que não chegaram a dividir, pois Maria Cecília se suicidou quando ele tinha apenas três meses. Processo de conscerto do desejo abre a temporada 2016 do Janeiro de Grandes Espetáculos (amanhã e sábado, no Teatro de Santa Isabel) e deve ser umas das peças mais concorridas do festival, pois o país se acostumou a ver Matheus colocar o dedo nas feridas nacionais, mas não nas próprias.
Esqueça toda a galeria de grandes personagens interpretadas por ele. Atmosfera intimista abrigará um Matheus recitando, cantando as músicas que marcaram a mãe e tudo sob o compasso do violão de Luã Belik e do violino de Henrique Rohrmann, conjunto definido assim, pelo autor: “Um teatro simples”. Pode ser, do ponto de vista de concepção, dos poucos elementos em cena, mas não da coragem de se mostrar com feridas reais tão abertas, tarefa das mais complexas mesmo quando se trata de excelentes artistas para os quais o céu sempre foi o limite. E quem duvida que vá tirar de letra, mesmo enfrentando o risco de sair bem machucado da empreitada? Aliás, viver beirando precipícios parece ser o sentimento que o move – na vida como na arte.
É preciso considerar que um ator assim, cujo talento permite ir de uma fronteira a outra da sensibilidade sem que se note o menor decréscimo de empenho em qualquer trabalho, merece aqueles preciosos minutos gastos em filas nada confortáveis, à espera da liberação do acesso ao teatro. De livro à mão, espero estar na de amanhã ou de sábado. Vai ser no mínimo uma delícia vê-lo novamente de perto.