Em Foco

Fazer o “caminho de volta” é urgente mas não simples, porque o consumo segue vitorioso na tarefa de conquistar corações e mentes ao redor do planeta.

Luce Pereira (texto)
Editoria de artes (ilustração)

Se houvesse um “armário” imaginário para guardar palavras, muitas das que exprimem valores universais, inclusive, já estariam dormindo profundamente no fundo de gavetas. A indústria e o seu selvagem apelo ao consumo trabalham cada vez mais pelo esquecimento de uma em especial – naturalidade. Sempre que alguém sente ao menos uma pontinha de nostalgia “daquele tempo” no qual cabia, por exemplo, paciência para esperar a chegada de um bebê (viesse ele com o sexo e a bagagem biológica que viesse), a conclusão não surpreende: a pessoa só pode estar ficando “velha”. E “velhos” passam a ser todos os que não madrugam nas filas para adquirir o lançamento (quase mensal) de uma bugiganga tecnológica e se preocupam com quem de fato não poderia estar em outras filas, buscando sobrevivência pura e simples. Parece um mundo sem sentido para optantes pelo “caminho de volta”, aquela estrada que em lugar dos espelhos elege a simplicidade e onde se entende, afinal, que o narcisismo levado a extremos só produz mesmo frustração.
Sobre esta “fúria” com que a indústria de novidades tenta invadir corações e mentes de milhões ao redor do planeta, transformando o mundo em um museu de renovadas bobagens, uma notícia nascida na Espanha: certa fábrica de lá concluiu que seria difícil para muitos pais resistir à emoção de partilhar músicas com o bebê, já a partir do quarto mês de gestação, e então criou dispositivo semelhante a um absorvente intravaginal. Conectado ao iPod da família, o transmissor levaria o repertório à criança em gestação. Obviamente, a indústria aposta em consumidores acometidos de grave doença conhecida como falta de informações básicas, ao menos no que se refere a desenvolvimento embrionário. Diz a ciência que fetos começam a ouvir sons entre a 12ª e a 16ª semana e somente na 14ª passam a reconhecer aqueles provenientes da fala. Logo, o investimento de R$ 550 (preço do aparelho na internet) é inútil, só devendo servir mesmo para o casal exibir socialmente a preocupação com o bem-estar do rebento e a expectativa de que ele nasça muito mais sensível do que os outros.
A propósito, sobre o desejo de milhões ao redor do planeta de gerar gente “sob medida” a partir da técnica de manipulação genética, a ciência, enquanto não descarta esta possibilidade, morre de medo dela. Se hoje o abismo que separa crianças pobres de crianças ricas já é intransponível, imagine o tamanho da desvantagem das primeiras em relação às segundas se essas viessem ao mundo programadas para viver mais e dar certo em tudo. Se às desigualdades é atribuída a maior causa dos sofrimentos humanos e se já é tão sufocante conviver com elas, em um universo dominando pela perfeição “fabricada” os níveis de escravidão seriam ainda mais insuportáveis. Diante de perspectivas tão assustadoras (não esqueça de lembrar que a ficção foi, muitas vezes, um ensaio da realidade), aqueles que refletem, ponderam e se esforçam para contribuir – os rotulados de “velhos” – só têm uma pergunta e nenhuma resposta: aonde vamos parar com tamanha indiferença?
Na antessala (cheia) do médico que iria me atender, acho mesmo que só doeu em mim a matéria que, na televisão, mostrava o sofrimento de habitantes do interior vitimados por doenças produzidas pelo Aedes aegypti – chikungunya, zika vírus, dengue. A maioria, no entanto, de smartphone à mão, nem desgrudava os olhos dos visores coloridos. A mesma pergunta veio, acompanhada de nenhuma resposta: aonde vamos assim? Então a atendente chamou meu nome sem me olhar, mesma dificuldade que o médico demonstrou ter. Que o mundo tem, melhor dizendo.