Em Foco 10.01

Episódio sobre ladrão carioca arrependido revela torcida do país para que respeito ao patrimônio alheio seja regra, não exceção.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

É fácil descobrir, no vasto dicionário dos bons princípios, a palavra que foi marcada a ferro e fogo na conduta de gente educada “à moda antiga”. Adivinhe: tem onze letras, origem no latim honos, que remete a honra/dignidade, e apareceu, ano passado, como a mais ignorada por número surpreendente de pessoas que cresceu acreditando justamente no contrário. Nunca sentimos tanta falta dela, da honestidade, pois tê-la como norte significaria, para o país, perspectiva de futuro promissor e garantia de credibilidade aos olhos do planeta. Tornou-se, entretanto, tão rara quanto o arrependimento de quem se dá bem por vias tortas, embora aqui e ali a realidade decida reeditar a história do bom ladrão, descrita no Evangelho de Lucas. Como o homem que, crucificado ao lado de Jesus, ganhou perdão e promessa de ser recebido no paraíso ao reconhecê-lo como filho de Deus, os que acabam pondo a mão na consciência e recebendo perdão de suas vítimas também existem nos dias de hoje.
Na história real mais recente, o ladrão arrependido é Fábio, um jovem carioca – deduz-se que pobre e de baixa escolaridade – e o homem a perdoá-lo, Eduardo, um advogado que, deduz-se, não deve ter maiores problemas para pagar as próprias contas. Os dois se cruzaram numa estação de metrô da Zona Sul do Rio de Janeiro, no último dia do ano, com objetivos diferentes: o rapaz queria dinheiro para comprar uma garrafa de espumante para a mãe e a vítima, se divertir no Réveillon de Copacabana. Ao constatar o furto da carteira, o advogado apenas mandou a preocupação com a perda às favas, se dizendo que naquela noite só queria pensar na festa, mas o autor do crime não conseguiu dormir. Afirmou isto em bilhete colocado num envelope, junto com quase todo o dinheiro existente na carteira e dias depois entregue no escritório do advogado. “Só retirei R$ 50 para comprar uma champanhe para minha mãe, peço que me perdoe”, escreveu. Debaixo de holofotes, depois de ter contado a história no Facebook, Eduardo Goldenberg declarou que o gesto lhe devolvia a esperança no ser humano.
Na crônica diária, ladrões arrependidos são poucos e facilmente perdoados, sobretudo quando alegam algum tipo de dificuldade material ou ingênuo desejo como motivador da prática do crime. Também são exaltadas pessoas que, esquecendo as próprias carências, resistem à tentação e resolvem devolver aos donos valiosos objetos deixados por eles em algum local público. Estas fazem parte do restrito grupo a que se referiu, numa entrevista, o ator Antonio Fagundes: “Quem é honesto com um milhão, é honesto com um centavo”. De fato. Seria com a multiplicação delas que o país conseguiria se reinventar e deixar para trás um tempo marcado por pequenas demonstrações de respeito ao patrimônio do próximo ou do povo.
A honestidade, afinal, não exige coragem, apenas noção precisa das fronteiras legais, morais e éticas que separam o que é nosso do que não, lição bem repassada noutros tempos. E como faz bem dar a César o que pertence a ele. Há três anos, eu aguardava o carro que me apanharia, na calçada do aeroporto de Belo Horizonte (MG), ao lado de um casal que vinha de Porto Seguro (BA), onde fora passar as primeiras férias com o filho pequeno. Conversamos um pouco, mas ao sair o marido acabou esquecendo a bolsa de mão na parte superior do carrinho de bagagem. Exausta, só fui procurar alguma identificação na manhã do dia seguinte. Havia objetos valiosos, como uma filmadora compacta e uma caneta Montblanc, além de vários cartões de crédito e o de uma locadora de filmes, que procurei, informando o caso. Avisados, logo me ligaram, a mulher em prantos, se dizendo muito agradecida porque ali estavam as imagens das primeiras férias em companhia do filho pequeno. O marido, médico famoso na cidade, confessando ter passado a noite a ligar para delegacias, a fim de deixar registrado o sumiço dos cartões e do talão de cheques. Em pouco tempo chegaram ao meu endereço, trazendo uma caixa de bombons. Estavam tão felizes que eu também ganhei o dia.