Em Foco 16.01

Vereador escreveu seu próprio currículo; nele, estão as palavras com as quais queria ficar na história.

Silvia Bessa (texto)
Jarbas (arte)

O repórter podia esperar. Colocasse o pé a qualquer dia no plenário da Câmara Municipal do Recife, Liberato Costa Júnior avistava de longe, ainda que usasse grau máximo nos famosos óculos de armação preta. Se o cidadão resolvesse puxar uma poltrona vaga de vereador, ele, chupando uma bala e deixando o barulho da boca audível, parava defronte exibindo roupa bem ensacada. Ou arrastava as rodinhas e sentava em outra cadeira. Teve um dia que pegou com duas mãos uma jornalista pelos braços. “Vamos ali que você vai gostar”. Levou-a até o birô da sala de sua secretária, com parede lotada de diplomas e honrarias recebidas por ele. Pediu que afastasse e abaixou-se para pegar numa gaveta surrada um currículo. “Tome, leve para você”, disse-me Liberato, em 1996, entregando o “histórico” de sua vida. Oito páginas datilografadas. Em quarenta e dois parágrafos, dizia como ele queria ficar na história.
Morto aos 99 anos quarta-feira, o documento hoje amarelado foi entregue com prazer e é relíquia que mostra quem era o vereador que conquistou dez mandatos no Recife de 1955 até 2012. Já no início da autodescrição, Liberato faz questão de mostrar sua precoce relação com o Poder Legislativo, ao lembrar que concluiu os estudos primários na antiga Escola Normal, que “à época funcionava onde hoje é a sede oficial da Câmara Municipal do Recife”, bem ali perto do Parque 13 de Maio, no Centro da cidade. Dos tempos escolares, destacava ter sido aluno de “grandes e expressivas figuras do mundo intelectual, entre eles Agamenon Magalhães, Aníbal Fernandes, Padre Cabral…” Isso no Ginásio Pernambucano, onde – ele exaltava – “já exerceu liderança e sendo colaborador do Jornal O Fanal”.
Liberato parecia adorar a imprensa e dos que dela faziam parte. Não hesitava em comparar os jornalistas da década de 1990 para cá com os que ele mais admirava: “Vocês deveriam estudar as matérias de Antônio Camelo e Aníbal Fernandes”, ouviam com frequência, sobretudo os recém-formados. Cansava de repetir, demonstrando certo orgulho, que foi o autor do projeto que criou a “Rádio Difusora Frei Caneca”, cuja função seria enfatizar a “vida política da heroica e democrática do Recife”. Sobre si, dizia no currículo: era um “numismata”, estudioso e colecionador de moedas e medalhas. Tinha várias e as exibia se tivesse oportunidade. Cita no texto aquelas preferidas. A do “Mérito do Capibaribe” no maior grau, a “mais importante do Recife”, está em primeiro.
Era um homem preocupado com a imagem que deixaria. Dizia a respeito dele: “Na vida social do Recife tem presença marcante”. Falava de si usando a terceira pessoa: “É considerado entre os colegas como companheiro solidário, um grande democrata e de educação esmerada, com bastante poder de penetração no colegiado na Casa José Mariano e bem assim na Assembleia Legislativa, quando deputado estadual de 1967 a 1969, onde teve inigualável atuação política partidária e representativa (…)”.
Liberato nunca frequentou faculdade. “Todavia, é considerado por quase todos os companheiros da Câmara, como um cidadão portador do Título Honorário da Universidade do Mundo, tendo pela vivência e bem assim pela absorção do aprendizado na escola da vida”, contrabalanceava. Mais à frente, relata suas relações com os pares da Câmara: “É sempre consultado pelos colegas e considerado um grande companheiro político, ético, afirmativo e competente”. Era vaidoso se falasse da habilidade artística. “Como todo brasileiro, tem um pouco de poesia impregnada em suas veias, tendo alguns de seus versos sido publicados e todavia alguns serviram como letras de marchas de bloco (…)”.
Como gestor, enquanto prefeito em exercício do Recife (em 1963), ressaltou que “foi o primeiro a promover o início da revitalização da cidade, sobretudo nas áreas históricas, tendo promovido a desapropriação das casas localizadas no histórico Pátio de São Pedro (…)”. Sobre o Liberato político, afirmava: “É considerado pelos políticos de todo o Brasil como sendo um dos mais autênticos municipalistas e pelos seus pares na Câmara do Recife tendo o conceito de grande regimentalista”.
Nisso, tinha razão. Ninguém conhecia mais de leis municipais que ele. E talvez não exista um vereador tão singular quanto Liberato Costa Júnior em todo o Brasil. Era como gostaria de ficar conhecido quando ditou em 1996 o que chamou de “perfil parcial do insigne e histórico VEREADOR LIBERATO COSTA JÚNIOR, com inúmeros mandatos”, como está na última linha do documento, usando letras maiúsculas.