23.01

Invenção de jovem irlandesa para abrigar pessoas que vivem em vias públicas não serviria a mendigos do Brasil, porque o que
o país deve a eles é moradia digna.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

O país é a Irlanda, uma ilha a Oeste do Reino Unido, com altíssima qualidade de vida, quinta melhor renda per capta do mundo e quinto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (0,895). Tem pouco mais de 4,5 milhões de habitantes, que vivem em um território de apenas 69.797 quilômetros quadrados. Só para ilustrar, Pernambuco tem cerca de 8,5 milhões habitando uma superfície de 98.311 quilômetros quadrados. Nada menos do que 99,9% dos irlandeses sabem ler e escrever. Lá, morar nas ruas não é proibido, mas há restrições, porque a mendicância torna-se uma ofensa se as ações dos pedintes interferirem nos direitos da população. O sistema político é república parlamentar e ninguém se queixa do nível de assistência do governo às populações de rua, que inclusive recebem dinheiro para se manter. Por causa disto, blogs que se reportam às políticas públicas criadas para protegê-las defendem uma teoria capaz de levar às gargalhadas qualquer brasileiro: quem faz das ruas a própria casa não o faz por necessidade, mas porque quer. Neste cenário vive Emily Duffy, estudante de 15 anos que decidiu usar sua inteligência e criatividade em favor desta pequena parcela da população ao conceber um saco de dormir à prova de água e de fogo.
Nas redes sociais, a notícia gerou comentários que oscilaram entre o elogio à postura humanitária da adolescente e críticas à inação do governo brasileiro e de governadores, que praticamente deixam a população de rua ao deus-dará e alvo de algo incomum na terra de Emily – a violência. Em outras palavras, considera-se que aqui a invenção da estudante não produziria o mesmo impacto, pois, em função do desamparo a que estas pessoas são submetidas diariamente, não haveria outra saída além da oferta de casa e de trabalho. Como se sabe, os programas de habitação popular sofreram cortes bruscos, profundos, e os empregos encolheraram de um modo geral, quadro que tornou sombrias as perspectivas de um futuro íntimo da palavra crescimento.
Há pouco mais de dois anos, em 2013, quando o saco de dormir provavelmente não passava de um esboço de ideia na cabeça de Emily, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República anunciava que somente no primeiro semestre 195 moradores de rua foram assassinado em todo o país, entre estes, dez por espancamento, nove por apedrejamento, sete queimados. Minas Gerais (29 casos), Bahia (23), Goiás (22), Paraná (15) e Pernambuco (10) responderam pelo maior número de crimes desta natureza, porém, tão grave quanto as mortes e o requinte de crueldade com que foram praticadas é o fato de o Ministério Público ter aceito a denúncia e transformado apenas 13 deles em ação penal.
Não por acaso, além da fome, o medo passou a fazer parte da rotina de moradores de rua no Brasil, para os quais um saco de dormir à prova de fogo e de água não significa o mais importante  – garantia de sobrevivência. Na verdade, nem o clima contribuiria para dar sentido à invenção. Porém, em qualquer lugar do mundo, vindas de quem vier, a solidariedade, a compaixão com os desfavorecidos representam atitudes merecedoras de todo o reconhecimento. E num país que reúne números tão formidáveis quanto o tamanho do seu território ( 8.515.767,049  quilômetros quadrados) e de sua população (quase 205 milhões de habitantes), elas são marca nacional, somam-se para atenuar os efeitos da ausência do poder público, que segue indignando, mas não na medida necessária. Como diria Oscar Wilde, um dos mais ilustres conterrâneos de Emily, “O descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação”. Ainda estamos longe. Muito longe.