30.01

Kailash Satyarthi, 62 anos, luta contra o trabalho infantil no mundo. Ontem, esteve no Recife para falar sobre a chaga que rouba dos mais pobres a infância, o prazer de brincar e a saúde.

Marcionila Teixeira (texto)
João Velozo (foto)

Kailash Satyarthi tem o hábito de acenar quando chega aos lugares. Parece uma forma de cumprimentar todos ao mesmo tempo, algo como um abraço em cada um. Foi assim ontem, momentos antes de proferir uma palestra especial. A presença de Kailash no Recife pode ser considerada um evento raro. No ano passado, o ganhador do Prêmio Nobel da Paz (2014) recebeu 19 mil convites para visitar diversas partes do mundo e divulgar suas ideias sobre o combate ao trabalho infantil e escravo. Escolheu, pela primeira vez, Pernambuco como um dos destinos. Sugestão do magistrado trabalhista Hugo Melo. Sua missão: falar para os novos juízes do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-PE). Então, o indiano que desistiu de ser engenheiro para lutar pela liberdade das crianças, discorreu sobre o papel de ser luz.
O ativista criou, em 1983, sua mais importante arma para combater as mazelas provocadas pelo trabalho infantil. O Movimento para Salvar as Crianças, que na língua original se chama Bachpan Bachao Andolan (BBA). Desde então, calcula ter resgatado mais de 80 mil meninos e meninas e milhares de adultos mantidos escravos, ajudando-os também no processo de reabilitação e reinserção social. “Cada um de nós que passa por esse curso representa a luz da Justiça”, disse, na palestra de formação inicial de magistrados. Em Pernambuco, cuja colocação é a 24ª no ranking nacional do trabalho infantil (entre 5 e 17 anos), o empenho do Judiciário pode realmente iluminar anos de escuridão alimentados pela crueldade do trabalho infantil. Chaga que rouba dos mais pobres a infância, o prazer de brincar, a saúde e a oportunidade de crescer com educação.
Com tranquilidade, Kailash fala sobre as infinitas possibilidades de abrir a mente, sobre o pensar diferente do padrão. Para ele, por exemplo, não há sentido em manter a exploração de crianças em nome da cultura. “Quanta exploração acontece em nome da cultura. As meninas, por exemplo, são forçadas a casar em idade precoce. Mulheres não têm direito à voz sob o guarda-chuva da cultura. A cultura não é um lago poluído. É algo que flui, que corre. Novas ideias deveriam abrir as mentes. O respeito à criança também tem sido parte da cultura por séculos. Não podemos contradizer o que foi dito por Jesus: ‘Deixai vir a mim as criancinhas’. Por que frequentamos cultos e missas e cultuamos a exploração de crianças em nome da cultura? A liberdade é dom divino e a infância também. Quem é contra a liberdade das crianças é contra o trabalho de Deus”, reflete.
O ativista chegou ao Brasil, país que já visitou cinco vezes nos últimos vinte anos, na última segunda-feira, quando foi a São Paulo. Naquele estado, encontrou-se com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na próxima segunda-feira, segue para Brasília, para a instalação do Fórum nacional do poder judiciário para monitoramento e efetividade das demandas relacionadas à exploração do trabalho em condições análogas à de escravo e ao tráfico de pessoas. “O Brasil empreendeu grandes progressos. Há vinte anos o governo calculava 40 mil escravos no país. Nesse período, as autoridades libertaram 50 mil escravos”, destacou. Em Pernambuco, o indiano também conversou com o governador Paulo Câmara, de quem ouviu a informação de que apenas 3% das crianças estão fora da escola. “Um número maior de crianças na escola hoje é boa nova, mas há necessidade de melhorar a qualidade de ensino”, pontua.
Pergunto a Kailash como ele nos ensinaria a enfrentar o trabalho infantil. Ele brinca e responde. “Não sou professor, mas, em nome das crianças brasileiras, que sinto ser minhas também, gostaria de destacar duas coisas. A primeira, que há quatro atores principais que precisam se unir: o governo, a sociedade civil, as instituições religiosas e o setor corporativo. A segunda é que a educação, a proteção e a saúde das crianças devem ter prioridade máxima”, ensina. Aos 62 anos, Kailash pratica sua teoria. Além das palestras no mundo inteiro e das conversas com líderes, promove invasões a organizações que mantêm crianças prisioneiras e mobiliza marchas.
Ao final da fala de Kailash, pensei sobre nossa responsabilidade com a situação miserável de crianças lançadas nas ruas ao comprarmos suas mercadorias baratas. Refleti no quanto somos egoístas com nossa compaixão sem efeito. Porque, na prática, alimentamos a manutenção de um ciclo de pobreza não desejado para nossos filhos. Ao calarmos e nos mantermos inertes, esquecemos de incluir, de igualar. Sofremos de um mal chamado hipocrisia.