31.01

Tradicional bloco carnavalesco misto do Rosarinho tem disposição de garoto, aos 90, e segue firme à luz de bela herança deixada por Capiba.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

Chegou o carnaval, época de afinar a garganta, aprumar as pernas, colocar as coisas sérias em segundo plano. Tem sido assim, desde que o frevo é frevo. E aqui folião com F maiúsculo precisa trazer o repertório na ponta da língua, embora nem sempre saiba (ou queira saber) de onde vieram as histórias cantadas através das músicas que fizeram a glória de blocos famosos. Contam-se nos dedos aqueles que se deram ao trabalho de descobrir de quem se trata, por exemplo, o quarteto eternizado por Nelson Ferreira na bela Evocação Nº 1 – Felinto, Pedro Salgado, Guilherme e Fenelon –, no entanto, não pode passar bloco lírico que os brincantes logo começam a evocar de um por um, seguindo a letra, como se fosse um coral ensaiando. Minha senhora, meu senhor, tem hora em que os versos repetidos à exaustão parecem grudar nos miolos feito tatuagem. Caso de Madeira que cupim não rói (Capiba) outro clássico das multidões, embora padeça da mesma indiferença por parte de quem ouve e canta. Mal associam o hit carnavalesco ao bloco ao qual pertence, e então imagina-se que nem de longe saibam a história por trás da letra. Mas aqui a explicação precisa ser dada com detalhes, porque ele é o hino, a carteira de identidade de um dos clubes mais tradicionais do Recife, o Madeira do Rosarinho, que nasceu no dia 7 de setembro de 1926. Noventa anos.
Já estreou na folia, é bom que se diga, com a sina de não levar insatisfação para casa. Surgiu de uma dissidência do Inocentes do Rosarinho, este batizado oito meses antes, em 18 de janeiro do mesmo ano. Foram parecidos apenas na maneira de nascer – o primeiro, de uma conversa entre cinco amigos mantida embaixo de uma jaqueira, o último, sob a sombra de uma árvore de gogoia. Consideremos que a mesma rivalidade observada hoje entre as escolas de samba cariocas e paulistas existia entre os blocos mais tradicionais de Pernambuco. Viria de uma destas brigas a música cantada a plenos pulmões, ainda hoje, por milhares de brincantes espalhados pelo estado inteiro. Sim, porque, naquela época, respostas a insatisfações aconteciam através de palavras musicadas com maestria. Ao menos por isso já vale a pena dizer: bons tempos, aqueles.
Era 1963. Momo reinava em Pernambuco, o Madeira já tinha 37 de vida, e eis que os juízes do concurso daquele ano resolvem conceder o título de vencedor do carnaval ao também tradicionalíssimo Batutas de São José, uma disputa que, de acordo com o sentimento do preterido, pareceu “marmelada”. Para a sorte daquela e das futuras gerações de loucos por folia, entrava em campo a genialidade de Capiba, chamada para transformar a revolta em desabafo e o perdedor (de direito) em vitorioso (de fato). Resultado: com o segundo lugar, espécie de “campeão moral”, o Madeira acabou encontrando a fórmula para nunca mais sair da boca do povo.
Faz tempo que o hino arranca lágrimas dos velhos amantes dos blocos líricos, fato que, observado por Eraldo Lira – do quadro de dirigentes do clube, à época – ajudou no nascimento de um vídeo com o título da música. Produzido pela Companhia Pernambucana de Artes (CPA) com o apoio do Sindicado dos Previdenciários (Sindsprev) e do Sindicado de Empregadores (Siemacc), resgata a história da agremiação, com depoimentos de “madeirenses” respeitáveis e de antigos moradores do bairro. Mas a vida nem sempre foi feita de glórias, confete, serpentina e, como a maioria dos clubes tradicionais, o bloco que emocionava Capiba enfrentou inúmeras dificuldades até a sede sofrer uma repaginação, em 1999, para abrigar melhor os frequentadores de seus bailes, a orquestra de vinte músicos e o coral profissional. Desde então entrou para o circuito turístico-cultural do Recife e segue mantendo o mesmo apetite para abocanhar títulos. São mais de 20, incluindo um hexacampeonato. Além da agenda de desfiles na programação oficial, sai arrastando multidão ao acompanhar o Bacalhau do Madeira, na quarta-feira de cinzas, pelas ruas do bairro. Aos 90, continua convincente – queiram ou não queiram os juízes.