ult0602p0003O elo que liga o compositor russo e o pernambucano Chico Science: a diversidade do nosso carnaval.

Vandeck Santiago (texto)
Greg (arte)

A história que vou contar parece ser sobre erros que se cometem em jornais, mas na verdade é sobre o tamanho do carnaval pernambucano.
Eu trabalhava na Folha de S. Paulo e certa vez enviei matéria anunciando que o Galo da Madrugada iria abrir seu desfile tocando Tchaikovsky.
– Ele vai? – me perguntou a jornalista encarregada de editar a matéria.
– Hum??
– Esse Tchaikovsky, ele vai tocar? – me respondeu a jornalista.
Eu poderia ter respondido “olha, se isso acontecesse seria extraordinário, porque o Galo da Madrugada viraria notícia internacional e eu seria autor do furo do século”… Mas numa redação você nunca deve tripudiar do erro de um colega, porque um dia o tripudiado será você. Sei o que a pressa, o acúmulo de assuntos e a desconcentração (e um pouquinho de ignorância também) são capazes de causar na cabeça de pobres coitados que passam o dia pulando de um assunto para outro. Por isso me limitei a dizer, num fio de voz envergonhado: “Não, não…”
Pelo silêncio que se seguiu, imaginei que a colega se dera conta do absurdo, nem que fosse pela sonoridade do nome. Fiquei com medo que no dia seguinte a notícia saísse dizendo algo do tipo “O Galo da Madrugada abre hoje seu tradicional desfile tocando valsa de Tchaikovsky, mas o compositor não estará presente…” A notícia, porém, saiu corretamente e eu só a menciono aqui porque hoje o Galo abre mais um desfile e mais uma vez estaremos falando da grandeza do nosso carnaval.
Sim, porque só em uma festividade grandiosa você fica sabendo que um tal de Tchaikovsky (1840-1893, russo da gema) abrirá o desfile e não se espanta com isso, apenas fica curioso em saber se ele estará presente.
A grandiosidade é algo que dá ao evento autonomia e a capacidade de repetir-se sempre, sem ser condenado por isso.  Nosso carnaval é como a história daquele personagem do filme Feitiço do tempo (Groundhog day), um repórter encarregado de cobrir o Dia da Marmota, nos EUA, e que de repente se vê envolto numa rotina em que todos os dias tudo se repete como da vez anterior, e a cada vez ele pode ir aperfeiçoando diálogos e situações.
Às vezes, porém, a natureza altera o script. Em 31 de janeiro de 1997, uma sexta-feira, entrevistei Antônio Carlos Nóbrega e Chico Science. A matéria saiu no domingo, 2 de fevereiro, com o título Nóbrega e Science atacam estilo “Tchan”.  Desta vez não houve erros de um editor em São Paulo. Os dois eram bastante conhecidos e o jornal deu destaque à matéria.  O texto dizia que Nóbrega e Science iriam apresentar-se juntos pela primeira vez no dia seguinte, em cima de um trio elétrico, durante o desfile do bloco Na Pancada do Ganzá, criação de Nóbrega. “”Nosso encontro estará a serviço da música de boa qualidade”, afirmava Nóbrega. “É uma forma de se insurgir contra os tchans e companhia limitada, que são músicas vulgares, de péssima qualidade, que prestam um desserviço à cultura musical do país”.  Quis a natureza, porém, que aquele encontro inédito não se realizasse. No mesmo domingo em que saiu a matéria, 2 de fevereiro, Chico Science morreu em um desastre automobilístico. Uma daquelas tragédias que encerram qualquer ciclo de repetições e nos causa dor toda vez que lembramos.
Eis que hoje, porém, o Galo da Madrugada faz seu desfile tendo Science como homenageado e Galo, Frevo e Manguebeat como tema. Assim como Tchaikovsky naquele ano, neste Chico Science também não estará presente, infelizmente. Mas com ausências, crises, fartura ou escassez, o carnaval pernambucano segue sendo o carnaval pernambucano – grandioso, diversificado e popular.