19.02

Golfinho sob ameaça de extinção é retirado da água, em praia da Argentina, mas acaba morto porque
banhistas aproveitam para fazer selfies e não o devolvem ao mar.

Luce Pereira (texto)
Reprodução da internet (foto)

Não há como fugir, é fato: existe uma onda de imbecilização geral, evidenciada por notícias que brotam dos quatro cantos do Brasil e do mundo. A última delas surgiu nas areias do balneário argentino de Santa Teresita, quando dezenas de banhistas perceberam a presença de golfinhos de uma espécie em extinção conhecida como Franciscana ou La Plata e retiraram um dos animais da água, para dar mais realismo àquele culto diário em louvor a Narciso. Enquanto um homem segurava o “troféu”, garantia à multidão à sua volta espetáculo devidamente transformado em selfies que logo passariam a alimentar a avidez das redes sociais por banalidades e demonstrações de ignorância em estado cristalino. Hoje alguém pode esquecer o filtro solar ou qualquer outro item indispensável à segurança ou conforto de um banhista, mas é praticamente impossível chegar à areia sem o telefone, não pela função primordial do aparelho, mas porque o ego não permite. Assim, um dos menores golfinhos do mundo (os da espécie medem de 1,30m a 1,70m), que tem como característica –  e infelicidade – nadar perto da praia, acabou não resistindo à balbúrdia e ao tempo de exposição fora do habitat natural. A turba, que neste caso resolveu fazer “injustiça” com as próprias mãos, naturalmente não se condoeu nem um pouco com o resultado da diversão coletiva e simplesmente abandonou o animal morto na areia.
ONGs ao redor do planeta, que trabalham em defesa de espécies ameaçadas, protestaram veementemente. A argentina Fundación Vida Silvestre emitiu nota apelando para a consciência dos banhistas, a fim de evitar episódios com o mesmo desfecho; a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) ressaltou o perigo de extinção que ronda os golfinhos La Plata; e a Fundação Mundo Marinho lembrou que, em qualquer situação na qual os animais pareçam ameaçados, é preciso chamar entidades encarregadas de defendê-los. Nenhum destes argumentos, no entanto, consegue fazer frente à irresistível tentação de se fotografar fazendo parte de um contexto incomum, ainda que o cenário e as circunstâncias do “clic” revelem o nível de alienação do “modelo”. Parafraseando o que Jesus teria afirmado, dize-me que foto fazes e eu te direi quem és. A propósito, do mesmo jeito que o comércio de produtos roubados não prosperaria se não houvesse receptadores, a tendência das selfies retratando maldades e bizarrices seria enfraquecida se as redes sociais impedissem postagens do tipo, sob pena de o autor delas ter a conta encerrada.
Maníacos por autorretratos não se incomodam em se mostrar predadores na mesma proporção em que não estão preocupados com riscos. Enfrentam todos, desde que as imagens ajudem a construir a sensação de estarem numa vitrine cada vez mais em evidência. Focados na própria vaidade, levam a extremos a máxima de que “os fins justificam os meios”, desrespeitam regras e podem invadir, sem nenhum constrangimento, a privacidade do outro. Espécie de vale-tudo por uma visibilidade que precisa ser exaustiva e frequentemente alimentada, pois, quando não, condena a um gradual e frustrante esquecimento. Nada mais terrível para quem vive de “glórias” tão efêmeras.
Independentemente das razões que movem os loucos por autorretratos, a paixão deles pela própria imagem tem despertado a curiosidade até de primatas. Em setembro de 2015, na Indonésia, um macaco da espécie Macaca nigra pegou a câmera habilmente deixada pelo fotógrafo David Slater e fez a primeira selfie do reino animal – sucesso absoluto na internet –, antes de detonar, também, a maior disputa pelos direitos autorais da foto. Slater alega que trabalhou arduamente para induzir o animal ao gesto, mas ativistas do grupo Peta questionam judicialmente dizendo que a imagem não pertence a ninguém, pois não foi feita por um indivíduo. O mundo anda assim, adoecido por uma imbecilização de dar medo.