24.02

Motorista de ônibus se revolta com falta de consciência de passageiros e se diz disposto a trocar de lugar com um deficiente visual que viajava em pé.

Luce Pereira (texto)
Silvino  (arte)

As causas que levam a maior parte dos cidadãos comuns a traduzir a rotina com a frase “matar vários leões por dia” são inúmeras, se eles vivem, sobretudo, nos grandes centros urbanos. Mas, vamos convir, a falta de educação contribui enormemente para piorar tudo, ainda mais se ela é fruto de uma cegueira tamanha que não permite nem mesmo enxergar os direitos do outro quando esses direitos nem precisariam, em outra situação, virar lei – ainda assim, que ninguém respeita. Sujar as ruas, ignorar o direito dos pedestres, depredar o patrimônio público são provas diárias e inequívocas desta falta de “verniz social”, mas poucas manifestações explícitas de incivilidade incomodam tanto quanto não se sensibilizar com deficiências e limitações físicas de alguém com quem se esteja dividindo o mesmo espaço. Nem se fala no quanto uma dose mínima de gentileza ajudaria para tudo funcionar melhor, mas apenas em não se fazer vistas grossas às necessidades de gente já muito castigada pela própria condição.    Porém, tudo tem limite e nem todos seguem cabendo no figurino de omissão e silêncio.
Desde a manhã de ontem, a lista dos inconformados com a indiferença e o desrespeito de que são vítimas estas pessoas foi acrescida de um nome – Willington Manuel Marques, 33 anos, motorista de ônibus há três. Quem usa regularmente a linha Rio Doce/Cidade Universitária sabe que a bordo a vida não tem nada de engraçada, a começar pelo excesso de lotação. Seria cenário dos mais propícios para passageiros abaixo de 60 anos e sem nenhum tipo de limitação física mostrar que as aulas de educação doméstica não resultaram inúteis. Seria. No entanto, de repente, eis que o motorista desacelera o veículo e avisa, num português claro, a decisão de trocar de lugar com um portador de deficiência visual, que seguia viagem em pé, caso ninguém se mexesse para providenciar um assento. A situação rendeu boas gargalhadas entre os passageiros, mas se é verdade que “tapas de luvas” deixam mais marcas do que as verdadeiras, ao menos aquelas pessoas não vão precisar de novo lembrete, nas próximas viagens.
Dispensável dizer que o gesto de Willington precisa se transformar no de todos, pois, sem ser multiplicado, o exemplo será sempre exceção, nunca regra. E foi um grande exemplo, sim. Da cadeira de cobrador, que ocupou durante 15 anos antes de assumir a de motorista, o rapaz assistiu a inúmeras manifestações de insensibilidade com os duros desafios impostos aos portadores de deficiência, desde a dificuldade de subir e descer dos veículos. Surpreendentemente, cabe ressaltar, os ônibus jamais foram adaptados para atender a este segmento da população, mesmo os equipamentos de acessibilidade estando previstos em lei. Mas, enfim, a indignação de Willington deu seu recado, ontem. Com bom humor, um cidadão lembrou aos outros que, no ônibus ou em qualquer espaço público, é preciso tirar os olhos do próprio umbigo.
Também vale lembrar que a luta por um comportamento em sociedade mais justo e humano é a mesma em outros lugares do mundo – embora isto não console. No metrô da Cidade do México, um comediante vestido de Jesus Cristo entrou em um vagão para, derramando “água benta” em passageiros sentados indevidamente nas vagas, tentar o “milagre” de fazê-los sair do assento em prol de usuários idosos ou com alguma deficiência, os verdadeiros donos delas. Aqueles que, constrangidos, se levantaram debaixo da risadagem geral, podem até não ter alcançado o milagroso estágio da educação mais elementar, porém, passaram a perceber que o mundo não segue indiferente a certos abusos.