02.03

Maioria das vítimas do mosquito parece ter muita dificuldade em entender o que está acontecendo.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Quem sai do interior muito cedo, aprende a sentir cada volta como reencontro com um fio que nunca se parte. Enquanto o tempo se põe em marcha e não permite ver os estragos que causa, a importância dos mais velhos vai se fortalecendo nas muitas lições transmitidas e nas inúmeras demonstrações de amor, quase sempre incondicional. Voltar acaba sendo uma reafirmação do melhor da vida. Daí por que ao menos supor que o fim da estrada não reservará a eles a paz merecida e sim sofrimento e desamparo, angustia. Deparar-se com esta certeza, então, faz um mal imenso. Há pouco mais de dois meses, inaugurei uma época da vida em que ir ao Agreste significa voltar com o coração partido. Não é fácil vê-los chorando de dor, várias vezes ao dia, pedindo para Deus apressar o dia da “viagem”. Não é fácil dizer que não existe remédio, tratamento ou esperança de ver a saúde novamente de volta. A maioria parece nem mesmo conseguir entender o que está acontecendo.
No fim das contas, ninguém entende, pois como pode a vida ter passado, num piscar de olhos, para o comando de um mosquito contra o qual as armas parecem de brinquedo? Na tentativa de traduzir o assombro que sentem diante do inimigo poderoso e quase invisivel, os velhos remexem na memória. Ao longo de tantos anos, viram a medicina desafiada incontáveis vezes, mas nunca com tamanha força. Muitos até desconfiam que a ciência pode estar redondamente enganada ao imaginar tanto desmantelo surgindo de apenas um inseto e ficam entre a dúvida e o abatimento sempre que escutam alguém enumerando as doenças transmitidas por ele: dengue, zica vírus, chikungunya, Síndrome de Guillain- Barré, microcefalia e agora, miosite. Diante dos noticiários de tv em que se veem diante da imagem de larvas do Aedes aegypti em movimento frenético dentro de tubos de ensaio, repetem que, quando eram jovens, aquilo não passava de “martelinhos” pulando em água parada. Nada que significasse ameaça a ser levada a sério.
E se faltam certezas, remédios que devolvam os músculos, as forças, nada mais plausível do que encerrar qualquer conversa sobre o mosquito com a frase “é o fim dos tempos”. O diagnóstico parece sob medida para explicar casamento perfeito entre a religião e a falta de confiança nos recursos da medicina para combater o problema. Eles, os doentes, não só parecem mais tristes como estão, de fato. Dizem (afinal, somos uma ilha cercada de dúvidas por todos os lados) que nos idosos as dores causadas pelo vírus da chikungunya contribuem para desencadear ou alimentar o fantasma da depressão, por si só uma doença que “não se deseja ao pior inimigo”. Nas emergências lotadas de hospitais particulares ou na recepção das policlínicas, o semblante deles é a representação do desamparo. Mesmo em volta da mesa do café da tarde, cenário que costuma resumir a alegre ideia de família, estão cabisbaixos ou repetitivos, a lembrar, pela enésima vez, que “isso não é vida”.
Na igreja do bairro, já não aparecem. As pernas não ajudam, embora tenham tanto a pedir. Ouvi de muitos, que desistiram de rezar durante as incontáveis horas presos à cama, pois não veem a reza “surtir efeito”. Sofrem de certa desorientação, inclusive, fruto dos dias que passam de forma absolutamente igual – entre gemidos de dor e o bendito sono, única possibilidade de esquecê-los. Não é mera impressão – as cidades do interior ficaram mais tristes depois que o mosquito começou a sitiar o país, obrigando a uma espécie de toque de recolher: quando o relógio se aproxima das 18h, as portas vão se fechando, as ruas, ficando mais vagas e silenciosas.
Durante o dia, muita gente passa com pés e punhos inchados, reclamando que não consegue trabalhar. Os reflexos estão na queda da produtividade na indústria do estado: a tríplice epidemia (de dengue, zika e chikungunya) afetou 42,3% de 144 empresas pesquisadas pelo órgão que as representa, a Fiepe. Foram 15% de faltas no período, enquanto 80% disseram ter precisado afastar funcionários, por “ordem” do mosquito. Neste caso, a ajuda aos idosos enfermos fica naturalmente reduzida, pois quem poderia prover os cuidados necessários também caiu doente. Como eu já disse, não há garantias de ir ao Agreste sem voltar com o coração partido.