05.03

Em ambiente de radicalização, ninguém ganha e muitos perdem. Momento pede serenidade e sensatez.

Vandeck Santiago (texto)
Miguel Schincariol/AFP (foto)

A ação de ontem contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva abriu porta para o risco de uma venezuelização do país – processo aqui entendido como acirramento da radicalização, confrontos entre grupos adversários, luta política transposta para enfrentamentos nas ruas e até atos radicais isolados. Mais ainda caso se consolide a opinião de que a condução coercitiva de Lula (ou seja, de a Polícia Federal levá-lo para depor) não se aplicava ao caso. A medida foi criticada ontem por um ex-ministro da Justiça de FHC, José Gregori  (“um exagero”, afirmou ele) e por um ministro do STF, Marco Aurélio. “Condução coercitiva? O que é isso? Eu não compreendi. Só se conduz coercitivamente o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado”, disse Marco Aurélio à colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo. Numa sociedade democrática ninguém está acima da lei, ninguém está imune a investigações e não pode haver intocáveis, mas isso não significa – para usar termo do ministro Marco Aurélio na mesma entrevista citada – que se deva “atropelar” direitos já consagrados.
Em um eventual processo de radicalização venezuelizada ninguém vai sair ganhando – mas muitos vão sair perdendo. E cria-se um ambiente propício a atos isolados que podem fugir ao controle das entidades, dos partidos e das lideranças. Ódios represados são liberados e podem resultar em agressões físicas e vandalismo, por exemplo. Cresce também a hostilização contra empresas jornalísticas vistas por partidários de um lado e outro como sendo “parciais” em sua cobertura. Fora isso tem a própria ação da militância de esquerda e dos movimentos sociais e sindicais, cuja postura pode mudar em um clima de enfrentamento. Para completar, hoje no Brasil não temos nenhuma liderança política de peso que possa encarnar o equilíbrio e ter o respeito das forças em conflito – alguém como um Ulysses Guimarães, por exemplo.
Na Venezuela a radicalização levou ao agravamento da crise econômica e confrontos entre antigovernista e governistas já provocaram até mortes. A situação chegou a um ponto em que houve uma inédita briga generalizada no parlamento, entre oposicionistas e governistas, que deixou um saldo de 11 feridos, em maio de 2013. A BBC fez matéria ontem sobre o assunto. Entre os especialistas entrevistados estava Peter Hakim, o presidente emérito do Inter-American Dialogue, centro de debates e pesquisas em Washington. “O Brasil não tem o tipo de divisão [radical] que vemos na Venezuela entre chavistas linha-dura, grupos de baixa renda que se beneficiaram enormemente de programas sociais, e uma classe média e alta que sente que o país foi tomado de assalto”, afirmou ele. Há que se acrescentar que o funcionamento de nossas instituições é diferente do de lá – mas a radicalização política nos dois países guarda muitas semelhanças. Na própria explicação do Peter Harkim dá para ver como os participantes da disputa se assemelham – temos os linha-dura, os grupos de baixa renda e uma classe média e alta insatisfeita com os rumos do país.
Na entrevista que deu ontem, após prestar depoimento à PF, Lula disse que agora está disposto a viajar pelo país, para participar de manifestações organizadas por aliados. “O que aconteceu hoje é o que precisava acontecer para o PT levantar a cabeça”, disse ele. “Eu me senti ultrajado. Se quiseram matar a jararaca, não mataram a jararaca, pois bateram no rabo, não na cabeça. Quero dizer que a jararaca tá viva”.
Lula é a maior liderança popular surgida no Brasil após a redemocratização – não há nisso um juízo de valor, e sim mera constatação histórica. É natural que uma ação contra ele desencadeie reações populares. Mais ainda se a ação não for convincente. O momento atual do Brasil é delicado e exige de todos “serenidade e sensatez” (expressão usada ontem por um ex-ministro do STF, Carlos Ayres). Não é hora de atropelar direitos. “Vamos consertar o Brasil”, como bem disse o ministro do STF Marco Aurélio, na entrevista que mencionei antes. “Mas não vamos atropelar. O atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na Praça dos Três Poderes”.