11.03

Legado de músico que morreu aos 71 anos é inestimável, na opinião de amigos e estrelas da MPB.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

De um homem que se propunha até a tocar guarda-roupa, extraindo do objeto musicalidade surpreendente, tinha-se mesmo que esperar tudo, menos que morresse tão cedo, aos 71 anos, quando ainda podia encantar muito mais o mundo. Foi uma quarta-feira para silenciar berimbaus e maracatus, como de resto, para deixar a cultura com um nó na garganta. Naná Vasconcelos tinha feito por ela o suficiente para apresentar Pernambuco ao planeta como um lugar onde o som vindo das alfaias tem força de trovão. Aliás, o primeiro a enfeitiçá-lo. Quando dormia, aos 7 anos, foi sacudido pelo barulho ensurdecedor de um maracatu, que na sua meninice confundiu com a voz poderosa vinda do céu. Era, não, disse a mãe, levando-o pela mão para apresentá-lo ao primeiro chamado de sua arte.
A missão de Naná era demonstrar, sem descanso, a teoria de que a música está presente em tudo, com delicadeza e força arrebatadoras – e nem nos últimos minutos de vida desistiu de levá-la a sério. No leito do hospital, às vésperas de sair de cena, recebeu a visita de Egberto Gismonti, outro gênio da MPB, e enquanto os dedos puderam produzir algum movimento desenhou notas que viraram uma canção. A última, feita como se fosse uma desesperada declaração de amor à vida, como se precisasse, com o gesto, colocar o ponto que faltava em sua obra. Na verdade, não faltava nem uma vírgula, a julgar pelos depoimentos emocionados de estrelas de primeira grandeza da MPB, muitas das quais parceiras de palco e de vivências sempre relembradas com alegria. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, chegou a dizer que o músico “nos ensinou a ouvir o Brasil”, por revelar, com seu talento buliçoso, um país de musicalidade desconcertante.
Sim, justiça seja feita: ao batuque do artista renderam-se ícones da música mundial como David Bowie, Pat Metheny, B.B. King, Miles Davis e vários da constelação nacional. O que esteve junto nos últimos momentos foi, também, um dos primeiros a abrir caminho, em meados de 1970, quando Naná ainda tinha muito pouco tempo de Rio de Janeiro. A profícua parceria com Egberto Gismonti rendeu, durante oito anos, três discos colocados nas alturas pela crítica – o antológico Dança das cabeças, Sol do meio-dia e Duas vozes. Mas Milton Nascimento, Gilberto Gil, Elba Ramalho e outros tantos grandes nomes também transitaram com desenvoltura pela vida e a carreira do artista, eleito sete vezes consecutivas como melhor percussionista do ano, no período de 1984 a 1990, pela revista especializada Down Beat. Colocou na estante oito prêmios Grammy, colhidos no campo onde semeou 24 álbuns, e entre as muitas honrarias recebidas, o título de Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Este, não apenas pela visibilidade em palcos e discos, mas, sobretudo, pelo trabalho desenvolvido com jovens de comunidades carentes do Recife. Comandou, por exemplo, o projeto voltado para crianças ABC das Artes Flor do Mangue, em Olinda.
A próxima viagem a Nova York não veio. “O dia não veio”. O próximo carnaval não virá. Mas ele ficou na memória dos tambores, das alfaias e berimbaus, dos apitos, tampas e panelas, a lembrar um deus africano ou um “Africadeus”, como já prenunciava seu primeiro álbum solo, gravado longe, em Paris. Embora fosse do mundo, levando aos quatro continentes o cosmopolitismo de sua música, era em Pernambuco que se reabastecia e se reconhecia o sujeito pleno de luz e força, assim lembrado por Milton Nascimento, ontem, em postagem emocionada nas redes sociais. “(…) tirava um som de tamanha beleza que nenhum outro músico do mundo seria capaz. Naná fazia mágica, estava além da música. Ele, sim, uma força extrema da natureza”. Consola saber que depois dele nenhum menino tem mais por que acordar assombrado com o som de um maracatu.