Quando o Diario de Pernambuco começou a circular, há 190 anos, o produto já era consumido pelos moradores menos abastados da província. A primeira menção dele no jornal é do dia 3 de março de 1827, quando uma carga veio a bordo de uma embarcação inglesa que aportou no Recife. Acondicionado em barricas, era um gênero solicitado pela Marinha, juntamente com o feijão, para dar a energia necessária à tripulação para enfrentar as longas travessias.
No dia 11 de abril de 1827, o Diario contava, na sua seção “Variedades”, a história de um bêbado que percebeu que um taverneiro queria lhe roubar a peça que levaria para casa. Acabou o ladrão levando o dito cujo nas fuças, em um esquina malcheirosa da capital pernambucana.
Assim como o jornal mais antigo em circulação na América Latina, o bacalhau – nome genérico do processo de salga de quatro espécies de pescado (Saithe, Ling, Zarbo e Cod, o mais nobre) – sempre rendeu histórias deliciosas.
Hoje iguaria cara, o peixe salgado importado da Europa e da América do Norte já foi usado como moeda de troca para aquisição de escravos ou era consumido principalmente pelos próprios cativos, por causa do baixo preço. O pirão resultante da mistura do caldo de bacalhau com farinha de mandioca era conhecido como “mingau de pipinga”.
No século 19, comia-se assado na brasa ou com farinha. Era também dado aos presos, mas como forma de castigo. O condenado comia, mas não podia beber água, padecendo de uma sede atroz. Com o charque e a rapadura, constituía o farnel do dia a dia dos mais pobres.
Até a primeira metade do século 20, o bacalhau continuou sendo vendido em barricas no mercado de estivas. Os pernambucanos de classe média que quisessem comê-lo tinham que tomar algumas precauções: fechavam-se portas e janelas e se cozinhava o peixe até que não pudesse exalar o cheiro característico. Ai daquele que fosse conhecido na vizinhança como comedor de bacalhau.
No dia 22 de maio de 2008, na seção online de Gastrô, a repórter Aline Feitosa contou histórias de grandes cozinheiras pernambucanas que enfrentaram o preconceito da época para colocar o bacalhau no fogo. De quebra, ainda dava a receita de um bacalhau espiritual (quer ler? clique aqui). Para as crianças, a lembrança era do óleo de fígado de bacalhau, a vitamina D milagrosa de gosto amargo.
A ocorrência das duas guerras mundiais afetou de vez o preço do bacalhau. A dificuldade de importação jogou o preço nas alturas, como se mantém até hoje, ajudado também pela baixa na produção mundial e uma maior procura no mercado global. Em 1930, Pernambuco importou 11 mil contos de réis em bacalhau. Em 1939, o custo foi reduzido para quase a metade, seis mil.
Os governos federal e estadual começaram uma campanha para trocar o manufaturado de origem estrangeira por pescados nordestinos. Até se incentivou a população a consumir carne de baleia, o pobre mamífero marinho. Foi nesta época que se começou a valorizar gastronomicamente o caranguejo (já existe uma postagem sobre este ser do mangue no blog. Leia aqui). O quilo chegou a alcançar o dobro de preço da carne bovina.
Foi um pernambucano que percebeu esta virada de classe do bacalhau. Abelardo Barbosa, o Chacrinha, passou a jogar para a plateia peças grandes do peixe, disputado a tapa apesar do sal e do cheiro. A partir da década de 1970, o bacalhau passou a figurar no Diario de Pernambuco nos suplementos femininos, como ingrediente para as receitas de Páscoa ou ocasiões especiais ao longo do ano. Já era nobre, não lembrando em nada seu passado popular. No dia 14 de fevereiro de 1980, o chargista Lailson mostrou que até o carnaval estava afetado pelos preços nas alturas. A esperança seria uma subvenção do governo para ter algo para balançar na vara.
Em 3 de março de 1980, o jornalista Arthur Carvalho publicou no Diario uma crônica sobre a lembrança gustativa de um bacalhau à Gomes de Sá almoçado a bordo do Vera Cruz, embarcação de passageiros que fazia a linha Recife – Rio Janeiro em 1952.
Graças à sua forte colônia lusitana, o Recife figura entre os bons lugares do Brasil para se degustar um bom bacalhau. Para quem prefere prepará-lo em casa, em tempos de crise o peixe pode ser comprado em até seis vezes. Que seja de boa qualidade para o gosto ser bem duradouro…
Para quem se interessar por história, recomendo o livro Bacalhau – A História do Peixe Que Mudou o Mundo (Nova Fronteira), escrito pelo jornalista norte-americano Mark Kurlanski e lançado no Brasil em 2001.