06.04

Pintor pernambucano vira tema de longa-metragem que vai ser exibido no 21º Festival É Tudo Verdade.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Ano passado, finalmente, fui conhecer a obra-prima de Pablo Picasso, em Madri. Porém, diante de Guernica, entre sem fala e grata à vida por me achar ali, não era apenas a genialidade do espanhol que me tomava, mas imaginar que o também talentoso Cícero Dias estivera com o autor da obra e até fora instado a dar sua opinião sobre se os tons cinza empregados nela não estariam em excesso. Pois, sim, o pernambucano nascido em um engenho de Escada, na Zona da Mata, era amigo íntimo de um dos maiores pintores de todos os tempos e ele próprio dono de uma história cuja riqueza de experiências estava a anos-luz da origem tão simples. Depois de causar o maior rebuliço durante a exposição do ousadíssimo trabalho Eu vi o mundo … Ele começava no Recife (Museu de Belas Artes, Rio, 1931), já se sabia que sua criatividade o levaria muito além, permitindo-o romper com o previsível e qualquer espécie de cerceamento.
O Cícero modernista, contestador, libertário e avesso a mordaças, que desde a juventude frequentava as páginas de jornais e revistas importantes, aparece, agora, como estrela do longa Cícero Dias, o compadre de Picasso, último título da trilogia sobre o modernismo criada pelo cineasta paraibano Vladimir Carvalho. Antes, brilharam os escritores José Américo de Almeida (O homem de areia/1981) e José Lins do Rego (O engenho de Zé Lins/ 2007). Sem ter passado o chapéu em direção às verbas públicas, Carvalho lançou mão dos próprios recursos para conseguir levar à frente o projeto, mas tudo terá valido a pena quando o longa estrear na mostra competitiva do 21º Festival É Tudo Verdade, um dos mais importantes do país, o que deverá acontecer ainda neste mês, com exibições no eixo Rio-São Paulo.
De fato, a grandeza do pintor salta aos olhos. No centenário de nascimento dele, em 2007, importantes publicações no Brasil e em várias partes do planeta revisitaram fartamente vida e obra, ressaltando a sofisticação do trabalho, que “combina as mais autênticas tradições pernambucanas com a essência universal da arte”, segundo escreveu o blog Arte Moderna. Isto é, conseguiu misturar às imagens da infância no engenho e do início de juventude, no Recife, um sentimento de mundo que beira a delicadeza e resulta numa pintura vigorosa, incapaz de prescindir do tom violeta forte através do qual buscava resgatar a ligação com suas origens.
Cícero saiu pelo mundo, mas o Nordeste saiu com ele. Em entrevista, disse que depois de chegar a Paris, em 1937, não sentia falta de quase nada, exceto de feijão, farofa e carne-seca.“O aroma do melaço de cana do engenho foi a recordação de criança que Joaquim Nabuco deixou gravada na sua portentosa literatura. Eu ficaria feliz se as pessoas, diante de meus quadros com cenas ou fragmentos de pomares, tivessem a memória do olfato ativada com a vista, para sentir o perfume das frutas que pintei”, afirmou, numa das inúmeras declarações dadas durante visitas ao Brasil.
Na última estada no Recife, menos de um ano antes de sua morte, em 2003, o vinho oferecido em um restaurante da cidade não foi aceito por motivos de saúde. Mas teria caído bem para brindar a uma vida na qual passou de menino simples de engenho a amigo de gênios das artes plásticas no mundo, enquanto inscrevia suas telas entre as muitas que bons entendedores seguem reverenciando. É bom lembrar que nós vimos Cícero e (o mais importante) … Ele começava aqui.