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Embates políticos em época de nervos à flor da pele estão conseguindo até separar amigos de longas datas.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

No começo dos anos 80, a versão de uma música em inglês de Milton Nascimento virou sucesso retumbante. Ou melhor, hino cantado pelo país inteiro, sobretudo depois de se transformar na trilha sonora dos funerais do então presidente Tancredo Neves. Na voz de Milton, a letra de Fernando Brant atingia em cheio a emoção dos brasileiros ao mostrar a amizade como um dos bens humanos mais valiosos. Ante a força dos versos e a melodia doce, não havia quem não dissesse que ela seria capaz de evitar a ruína de qualquer relação entre amigos, se tocada exatamente na hora do acirramento dos ânimos. Mas as coisas mudam – e nem sempre para melhor. Dezesseis anos se passaram, desde a morte de Tancredo, e ironicamente foi a política a se transformar em eficaz instrumento de produzir amizades fraturadas, sobretudo depois das redes sociais. Já a música, Canção da América, esta passou a ser apenas mais uma entre as relíquias da MPB que embalaram momentos históricos igualmente pouco lembrados.
O terreno das relações humanas é justamente um dos mais atingidos pelos embates políticos, a ponto de ir se tornando movediço e perigoso à medida que as preferências são gritadas, sobretudo nas redes sociais, palco maior das desavenças. E isto já vem de tempos. Em 2014, o clima de animosidade com a aproximação do segundo turno da eleição presidencial era tão grande que um tweet rendeu 17 mil curtidas, por conter apelo emocionado à união e superação das barreiras ideológicas: “Gente, quem perdeu família ou amigos por causa desta eleição, vamos combinar de passar o Natal juntos”, dizia o texto. Amigo, “que era coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito”, passou então a ser apenas aquele que concorda 100% com o pensamento político do outro ou não ousa abordar nenhum assunto que acenda o estopim. Sinal de uma época de nervos à flor da pele, hoje as pessoas podem estar levando no coração não um amigo, mas “uma ferida acesa”, como diria Caetano Veloso
Crítico ferrenho da manipulação de sentimentos que tranformou a possibilidade de debate político em gritos e agressões, o escritor Milan Kundera andou se posicionando contra a histeria coletiva, no ensaio A amizade e a inimizade . “Em nosso tempo, aprendemos a submeter a amizade àquilo que chamamos de convicções. E até mesmo com o orgulho de uma retidão moral. É preciso realmente uma grande maturidade para compreender que a opinião que nós defendemos não passa de nossa hipótese preferida, necessariamente imperfeita, provavelmente transitória, que apenas os muito obtusos podem transformar numa certeza ou numa verdade. Ao contrário da fidelidade pueril a uma convicção, a fidelidade a um amigo é uma virtude, talvez a única, a última. Hoje, eu sei: na hora do balanço final, a ferida mais dolorosa é a das amizades feridas; e nada é mais tolo do que sacrificar uma amizade pela política”.
Estudos já provaram que o filósofo francês Voltaire (1694-1778) jamais escreveu a frase “não concordo com o que tu dizes, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizer”. No entanto, não é a autoria que importa e sim o indício de que vem de longe a preocupação em se ter uma sociedade onde haja respeito a opiniões divergentes. São elas que dão sentido à palavra democracia e justificam a eterna busca do homem pela verdade. E porque é tão difícil encontrá-la, tudo leva a crer que a procura seria menos torturante na companhia de amigos do que longe deles.