19.04

O consolo em um ambiente de hipocrisia é que cedo ou tarde todos percebem quem são os hipócritas.

Vandeck Santiago (texto)
Louisa Gouliamaki/AFP (foto)

Uma coisa é o que você diz. Quem diz pode dizer qualquer coisa – pode, por exemplo, referir-se contra a corrupção usando as palavras mais duras. Outra coisa é o que você faz. O que vai mostrar se você está sendo verdadeiro ou não em sua postura é a sua prática – os seus atos, os seus gestos. O leitor que me acompanhou até aqui deve estar pensando que vou falar do atual momento da política brasileira, mas não, vou falar de um gesto ocorrido estes dias e que é um exemplo perfeito de discurso combinado à prática.
O protagonista dessa história é o papa Francisco. Ele visitou a ilha de Lesbos, na Grécia, onde estão centenas de migrantes que tentam entrar na Europa, que lhes fecha as portas – e em alguns países até erguem cercas e muros para que eles não passem. São refugiados, que fogem de conflitos na Síria, Oriente Médio e Ásia. O papa pronunciou-se contra as guerras, pronunciou-se a favor de ajudas aos migrantes, pronunciou-se sobre o drama que eles sofrem. “É preciso nunca esquecer”, disse ele, “que os imigrantes, antes de serem números são pessoas, rostos, nomes, histórias”.
Tudo isso aí é o discurso. Palavras importantes por virem de um líder religioso mundial, mas palavras. Só que ao retornar para o Vaticano o papa Francisco levou com ele, em seu avião, três famílias de refugiados sírios (12 pessoas ao todo, sendo seis adultos e seis crianças). Pois bem, esta é a prática, a atitude, o gesto. Não salvou todos os refugiados que estão na ilha – e nem poderia, porque lá estão mais de três mil nesta situação. Mas seu gesto carrega um peso simbólico extraordinário – é o maior líder mundial do catolicismo acolhendo três famílias de muçulmanos. É o papa em uma atitude que representa um claro desafio à política da Europa para os migrantes.
O Vaticano tem 1.000 habitantes, e agora, com a chegada das três famílias, terá um total de 20 refugiados sob sua proteção. Numa comparação matemática, de fundo humanitária, pode-se dizer que se os 300 milhões de europeus fizessem como o Vaticano, seis milhões de refugiados encontrariam abrigo. Outro ponto do discurso colocado em prática é que, em dezembro do ano passado, o papa Francisco sugeriu que as paróquias da Europa acolhessem uma família de refugiados. Trata-se de um tema delicado, dada a desconfiança que existe em boa parte da população da Europa (e dos próprios religiosos) em relação aos muçulmanos.
O gesto do Papa tem o peso simbólico, mas além disso possibilita que 12 pessoas tenham condições de levar uma vida nova sob a guarida do Vaticano. “É uma gota no mar, mas, depois desta gota, o mar não será mais o mesmo”, afirmou ele, citando madre Teresa.
A ‘gota no mar’ é uma das traduções da prática. Foi assim também com a campanha de Betinho, a Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, nos anos 1990. Um ato que acabou mobilizando o país para a distribuição de alimentos aos mais necessitados. Não era uma campanha capaz de acabar com a miséria, mas chamou a atenção de todos para o problema, inspirando políticas específicas para combatê-lo. Além de, claro, atender a necessidade imediata de dar de comer a quem tem fome.
As palavras são valiosas para externar intenções e possibilitar argumentações e reflexões. Mas a prática é quem vai determinar se as intenções são sinceras ou se não passam de um artifício para atingir determinados fins. Quando as palavras dizem uma coisa e a prática demonstra outra, o cenário que se monta é o da hipocrisia. O único consolo é que, quando isso acontece, seja na religião, seja na política ou em qualquer outra área onde o ‘discurso’ ocupa papel de destaque, cedo ou tarde todos acabam percebendo quem são os hipócritas.