24.04

Nos 400 anos da morte de Cervantes, obra-prima serviu para refletir sobre momento político.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

A mais alegórica das sessões da Câmara Federal, no último domingo (17), em que era votado o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ainda não se descolou da memória da população e deve seguir viva por muito tempo como um episódio tragicômico – rimos tristemente de nossa burrice em eleger um parlamento de qualidade tão abaixo da crítica e choramos com as consequências disto. Solto ali, o herói de Miguel de Cervantes – que até hoje encanta o mundo –poderia confundi-los com enormes criaturas, como nós os confundimos com representantes da população, e questioná-los de forma eloquente, enfrentando-os sem tremer embaixo da velha armadura. Seria assim, caso Dom Quixote de la Mancha adentrasse àquele recinto, cheio de vontade de romper com o que considerava um mal para todos. “É louco!”, bradariam muitos, enquanto outros escolheriam ridicularizá-lo. E nós, se nos fosse dado o direito de estar no plenário, como reagiríamos? Muito mais com a placidez do fiel escudeiro Sancho Pança, que preferia traduzir a realidade apontando os equívocos do amo a lutar com ele. Agimos como quem, apenas enxergando ou avisando sobre o erro, lava as mãos e depõe as armas que sequer chegou a empunhar.
Ontem, o mundo lembrou os 400 anos da morte de Miguel de Cervantes e novamente se rendeu à genialidade do escritor que produziu a mais elogiada obra da literatura mundial. Dom Quixote não é apenas o clássico dos clássicos por ter sido escrito com todos os requintes de lirismo, poesia e realismo numa época cheia de adversidades, mas por seguir se encaixando perfeitamente nas voltas que o mundo dá. Não importa quantas. E o momento político que o Brasil atravessa não poderia ser mais propício para aludir ao caráter atual do livro, capaz de levar o leitor a se questionar sobre o que de fato representaria a realidade e o que não passaria de vento forte açoitando a imaginação do herói cervantiano. Ele via em rebanhos de ovelhas exércitos aos quais atribuía armas, escudos e coroas, enquanto nós, como eleitores, vemos cordeiros onde só existem lobos. É que, muitas vezes, as fronteiras entre a loucura e a imprecaução são tão tênues que confundem num piscar de olhos.
Lamentavelmente, não podemos tratar a realidade com o humor usado por Cervantes para tornar menos dramáticos os caminhos percorridos por Dom Quixote e Sancho. Embora devêssemos. Ver, por exemplo, um todo-poderoso se considerando acima da lei, do bem e do mal, e crendo que o claro objetivo de ampliar os seus domínios (políticos e econômicos) serão alcançados impunemente, poderia arrancar gargalhadas, ao invés de revolta e angústia. Mas, entende-se, apesar do incômodo que a reflexão causa, pois se no tempo vivido pela personagem havia certa dificuldade em conseguir uma ilha para o amigo e fiel escudeiro, hoje é possível presentear com muito mais, bastando acionar contatos e fornecer senhas de acesso a contas em bancos na Suíça.
Bem ou mal, temos inúmeros motivos para nos reconhecer, como sociedade, no herói de Cervantes, naquilo que ele mais desejava e que, não encontrando na realidade (decretada pela falência financeira), descobriu na fantasia saída da obsessão pelos livros. Não por acaso, temos desejo de grandeza e de Justiça semelhante, mas falta parar de insistir em ver moinhos onde existem mandatários de baixa estatura política, defendendo o indefensável e acusando aquilo em que cabe defesa. Então recorramos aos livros, que enquanto limpam os olhos aclaram a consciência. Foi assim que Quixote aniquilou todos os seus inimigos e superou todos os obstáculos.