26.04

O julgamento do futuro pode não ser o mesmo do presente, porque a história não dorme nem esquece.

Vandeck Santiago (texto)
Annaclarice Almeida/DP (foto)

Na hora em que são praticados, os atos têm o significado do presente – podem, à luz do momento, ser elogiados, criticados, reverenciados, tratados como algo dentro da mais absoluta normalidade. Mas tempos depois aquele mesmo ato pode ganhar uma interpretação completamente diferente. Faço este raciocínio tendo como inspiração a denúncia que acaba de ser apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo contra o médico legista aposentado Harry Shibata, acusado de ter forjado informações sobre a morte do militante político Yoshitane Fujimori, em 1970.
O ativista era dirigente da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma das organizações que aderiu à luta armada durante o regime militar. Ele foi morto em São Paulo, durante “troca de tiros” segundo a versão da polícia. A operação que resultou na morte dele foi efetuada “supostamente por ordem do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Destacamento de Operações e Informações do antigo II Exército (DOI) em São Paulo”, informou ontem o Estado de S. Paulo.
Conforme a denúncia do MPF, Shibata endossou a versão da polícia ao fazer o laudo necroscópico.
Mas um novo laudo, elaborado a pedido da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, encontrou outra explicação. Fujimori estava acompanhado de outro militante da VPR, Edson Quaresma, quando foram abordados pela polícia. Não reagiram, disseram testemunhas. E a perícia constatou que Fujimori foi atingido por tiros depois de caído no chão.
O fato aconteceu em 5 de dezembro de 1970. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o carro em que Fujimori e Quaresma estavam foi metralhado por agentes do DOI. “Na rua, sem sacar armas, tentaram correr, mas tombaram após serem baleados”, segundo o texto da denúncia. Quaresma teria morrido no local; Fujimori, não: “Os policiais colocaram o corpo dele e Fujimori, ainda vivo, em peruas e os levaram para a unidade chefiada por Ustra”.
A procuradora da República Ana Letícia Absy, autora da denúncia, diz que Fujimori estava “rendido pelos agentes policiais, sem condições de defesa, quando foi alvejado por mais de uma vez, com nítida intenção de provocar sua morte, e não em situação de tiroteio, conforme versão oficial pelos agentes governamentais”. Escreve ela que “pode-se concluir que as omissões acerca da quantidade de projéteis e inconsistências acerca de ferimentos de entrada e saída e trajetória dos projéteis foram intencionais, visando justamente mascarar as circunstâncias da morte de Yoshitane Fujimori”.
A denúncia do MPF requer que, por este episódio, Shibata tenha sua aposentadoria cancelada, perca o cargo público de médico legista e seja condenado por falsidade ideológica. A imprensa o procurou ontem, mas não conseguiu falar com ele. Como sabemos, a denúncia em si não é sinônimo de culpa – o denunciado terá agora o seu tempo e oportunidade para defender-se.
Convém ressaltar, porém, que esta não é a primeira vez que Harry Shibata é acusado de forjar laudos de militantes mortos durante a ditadura. Como o do jornalista Vladimir Herzog, por exemplo, cuja morte em 25 de outubro de 1970 teria sido por suicídio, segundo a versão oficial – versão já desmentida pela Justiça, e ratificada no novo atestado de óbito dele, de 2013, que dá sua morte como decorrente de “lesões e maus tratos” sofridos em dependência policial. Shibata assina o laudo também de outros mortos conhecidos, como Carlos Marighela (1969) e Sônia Maria Stuart Angel (1973). O médico é várias vezes citado no livro Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos após 1964.
Sempre há quem pense o contrário, mas a verdade é que a história não dorme, não descansa e não esquece.