Em Foco 01.05

Escultor que vive no Vale do Catimbau tem obras em países da Europa e em museus brasileiros.

Luce Pereira (texto e foto)

A barba caminha livremente pelo rosto de José Bezerra, que fala mais do que todas as cigarras do Vale do Catimbau (Buíque) cantam. Aos olhos de quem vive a rotina “intoxicada” dos grandes centros urbanos, o homem com cara de índio (descende dos kapinawás) não teria grandes motivos para exalar felicidade por todos os poros: vive em uma casa de taipa com a mulher e a numerosa prole, olhados de perto por “seres” de madeira rústica saídos da caatinga ao redor e distribuídos pelo amplo terreiro, que funciona como “sala de visitas”. O anfitrião vai buscar o visitante já na porteira, levando-o para o meio do seu museu a céu aberto, razão maior daquela alegria toda. E na tentativa de exprimi-la, Zé é uma metralhadora verbal que termina por complicar os planos de quem chega pretendendo uma visita breve.
Dali para o “ateliê” o cenário quase não muda, enquanto a euforia do homem, hoje aos 63 anos, só aumenta. O pequeno espaço, feito de varas, taipa e palha, tem o chão coberto por restos da madeira esculpida e objetos muito velhos, entre os quais os instrumentos rudes usados na tarefa de dar forma àquilo que enxerga quando olha para troncos e galhos recolhidos na mata. Sem saber ler nem escrever, jamais seria um artista formal. Sua arte é intuitiva, mas cheia das verdades que ele cultiva espiritualmente – e daí as asas que ganhou para levá-la ao mundo.
Não é, no entanto, uma história tão memorável assim, tem lances que, ao relembrar, os olhos marejam. Em 2009, estreou em grande estilo na Galeria Estação, em São Paulo, para onde as obras voltariam, em 2015. Mas, até desfecho tão glamouroso, assinou, “no escuro”, um contrato com “uma paulista” que encantou-se com as esculturas e, sob a promessa de pagar-lhe R$ 2 mil por mês, o fez produzir incessantemente. “Levei uma caminhoneta e dois caminhões com umas 80 peças, cada um, para o Recife, e de lá elas foram para a Suíça, Holanda …”, relembra.
Além de não receber nada pela venda do acervo, o destino encarregou-se de enviar, a domicílio, um visitante que iria lhe dar a dimensão do prejuízo sofrido com a parceria. Recepcionado com a festa de costume e depois da reiterada satisfação em conhecê-lo pessoalmente, o homem pede que lhe traga o catálogo da exposição de 2009 e, apontando para uma foto, diz que havia comprado a peça por R$ 9 mil. “Aquilo me doeu tanto”, confessa, muito sentido. Mas a tristeza nem chega a ganhar corpo, pois logo passa a tirar, de improviso, uma música em minha homenagem, saída do berimbau feito por ele. São duas panelas de alumínio, a madeira que as une e, deslizando sobre ela, grossa corda de aço da qual retira as notas, tocando-a com chave de fenda e pequeno bastão de madeira. Tudo muito melódico e ritmado.
Dizem os filósofos que uma das maiores provas de sabedoria é rir de si mesmo e, nesta matéria, o desempenho de José Bezerra consegue ser tão surpreendente quanto seu espírito inventivo. “Um dia, minha mulher disse que eu estava feio demais e me botou para dormir numa rede, do lado de fora”, brinca, quase se engasgando com o riso solto misturado às palavras, acostumadas a brotar como sua arte brota da aridez da caatinga. Já refeito, o artista do Catimbau conta que, naquele dia, teve um sonho no qual uma pessoa afirmava que passaria a tirar da mata sua arte e seu sustento. Foi há mais de dez anos e ele nunca mais parou.
Paulo Coelho (escritor), José Celso Martinez (diretor de teatro), José Dumont (ator), Zé Ramalho (cantor), Matheus Nachtergaele (ator), Giulia Gam (atriz) e mais outros tantos famosos aparecem para conhecê-lo e às obras, na casa que nem sanitário possui, do mesmo jeito que o anfitrião não possui mais um só dente. Ele, também, não dá a menor importância a isto e entre risos diz que precisa mesmo é das mãos. Pobre desde o início da vida, passou por dificuldades extremas, mas ao se deparar com a beleza do seu ofício entendeu-o como o maior de todos os presentes – e desde então vive para celebrar a vida. Este Zé sabe demais das coisas.