En Foco 06.06

 

Há 160 anos nascia o pai da psicanálise, que morreu aos 82, na Inglaterra, longe do alcance de Hitler

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

Um divã seria apenas um divã se um homem nascido há 160 anos, em Frelberg (hoje República Tcheca), não o tivesse transformado em convite à confissão das dores mais íntimas que afligem a humanidade, aquelas originadas no inconsciente. Pela enorme escadaria que levava ao seu consultório, na ampla casa de Viena onde foi morar com quatro anos incompletos, subiram muitas cabeças atordoadas e desceram outras tantas sabendo lidar melhor com angústias e ansiedades, vaivém capaz de justificar a enorme fama adquirida a partir das sua pesquisas sobre a mente – polêmicas até hoje, mas quem ousa duvidar da genialidade de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, se as descobertas dele continuam influenciando gerações de psicoterapeutas e pacientes, num debate incessante?
Trabalhos bibliográficos sugerem que, vaidoso, ele gostava de ser visto como gênio – e refinado, desses que desfilam elegância, além de gosto por arte e viagens. Mas seria a inteligência e a personalidade, de fato, aquilo que o transformava em centro das atenções, desde muito cedo. Aos 17 anos, já aluno de medicina da Universidade de Viena, ia com assiduidade ao laboratório de neurofisiologia e aos 39, publicava o seu Estudo sobre histeria, sugerindo que o problema seria fruto de emoções reprimidas, mas passível de cura se o paciente conseguisse, através da fala, expressá-las. Para além da hipnose, desenvolveu o que é considerada uma das bases da técnica psicanalítica, a livre associação, através da qual a pessoa verbaliza o que lhe vem à mente e assim libera memórias reprimidas, causadoras de neuroses.
Já abrindo caminho para a criação da Sociedade Psicanalítica de Viena (1908), lança, em 1899, A interpretação dos sonhos, onde diz que eles simbolizam a parte mais profunda da mente humana, seriam a “estrada mestra para o inconsciente”. Teorias assim, em um século onde o conservadorismo espalhava suas potentes asas, faziam o “doutor Freud” encontrar pela frente robustos obstáculos para convencer o meio acadêmico. No entanto, gênios são movidos a desafios, desenvolvem mecanismos próprios de defesa em relação a críticas e ele não pretendia se contentar com opiniões apenas razoáveis acerca do seu trabalho, que também se alimentava da enorme polêmica produzida.
Quando sexo era assunto falado apenas à boca miúda, dizia que se tratava de um dos sentimentos reprimidos mais importantes e, enquanto escandalizava com a afirmação, fustigava ainda mais a sociedade ao responsabilizá-la por impedi-los de serem satisfeitos. Teorias com esta força fizeram discípulos importantes, embora depois separados por outros pontos de vista, caso de Carl Jung, que discordava da ênfase dada por ele ao desejo, explicado como “o impulso de recuperar a perda da primeira experiência de satisfação”.
Em 1923, quinze anos antes de morrer, Sigmund Freud lançou uma de suas mais importantes obras, O ego e o Id, moldura de sua teoria da mente. Estava sob efeito da atmosfera da Segunda Guerra Mundial, além da perda da filha Sophie (teve seis filhos com Martha Bernays) e no trabalho teorizou a respeito da eterna luta – de um lado, a vida e o amor (simbolizados pelo deus grego Eros) e do outro, a morte e a destruição (simbolizados por outro Deus, Tanatos). Longe de Viena, na Inglaterra, onde se refugiou para escapar da perseguição dos nazistas aos judeus, foi vencido pela idade e por um câncer. Mas, mesmo com todos os questionamentos da neurociência, sobretudo a partir da década de 1990, a contribuição do seu trabalho para a compreensão do que ocorre no âmbito da mente humana é indiscutível. O mundo se divide entre fãs ardorosos da teoria que criou e pessoas que têm ressalvas a ela, em função do avanço das pesquisas. Não há meio termo, ou seja, quem ouse se mostrar indiferente.