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Segundo filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius, é aplaudido de pé e elogiado pela delicadeza.

Luce Pereira (texto)
Valery Hache/AFP (foto)

Se a performance alcançada pelo filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, no 69º Festival de Cannes, traduzisse o momento vivido pelo Brasil, hoje, não estaríamos com medo do futuro, mas com esperança. Foi ovacionado, aplaudido de pé, fazendo a crítica internacional se derramar em elogios ao desempenho da atriz Sônia Braga e à delicadeza do seu criador, que conseguiu falar ao coração da plateia valendo-se de uma certeza cristalina: o que faz falta e toca o mundo é afeto, matéria-prima da história sobre a jornalista viúva aposentada, sua família, suas memórias e o local onde todos vivem – um edifício onde só o apartamento deles resiste à ganância e ao apetite do mercado imobiliário.
A boa crítica, aquela que entende mesmo de cinema e não fica de má vontade só porque o cineasta é nordestino, aplaude a opção de Mendonça por falar de afeto da maneira mais simples e exata – através da memória de algumas das personagens e valorizando extremamente o cotidiano delas, por onde as lembranças transitam num vaivém sutil e parecem transformar em relíquia cada objeto do apartamento. O próprio imóvel é em si um relicário, razão pela qual a protagonista, Clara, uma mulher de 65 anos, segue resistindo às tentações para vendê-lo a uma construtora. Seria como desistir daquilo que de fato dá sentido à palavra família, proporcionando a todos deliciosas viagens ao tempo em que, de tão boa, a vida parecia uma aventura sem fim.
Se não sair do festival com o prêmio de Melhor Atriz, como se cogita, a atriz Sônia Braga – já há um bom tempo mantendo certo divórcio do audiovisual brasileiro – deve ao menos voltar para casa com adjetivos como “incomparável”, usado pela festejada revista Variety, a mesma que se referiu a Kleber como mestre (“no domínio dos sons”) e “nova e importante voz do cinema brasileiro”. O jornal inglês The Guardian prefere ir pelo viés político ao analisar o trabalho e avalia que o filme pode ser visto como uma metáfora do Brasil, “com nepotismo, corrupção e cinismo em seus mais altos escalões”.
O viés da crítica de Peter Bradshaw, do The Guardian, não poderia encontrar melhor justificativa do que o cenário político atual, no Brasil, nem o cineasta, melhor vitrine para denunciá-lo. Uma plateia lotada viu todos os componentes do filme pisar o palco com placas e faixa denunciando o “golpe” sofrido pelo país a partir da forma como se deu a suspensão do mandato da presidente Dilma Rousseff e a chegada do vice, Michel Temer, ao poder. Naturalmente, uma resposta direta pela insatisfação com a morte do Ministério da Cultura, que valeu ao ministro da Educação, Mendonça Filho, ser recebido com extrema hostilidade por servidores, no primeiro dia de trabalho, ao anunciar a transformação do Minc em simples secretaria – e vinculada à Presidência da República. Ainda não há data prevista para o início da exibição do filme no Brasil, mas as redes sociais já apostam que o protesto vai se repetir aqui, antes mesmo de as cortinas se abrirem.
É ilusão crer que será fácil desbancar, na entrega da Palma de ouro, figuras incensadas por público e crítica como o espanhol Pedro Almodóvar, mas convenhamos, a vitória pode ter várias interpretações. Já não seria uma – e do tamanho do prestígio de Cannes – estar entre os 21 selecionados? Isto sem deixar de lembrar que muitas das produções têm orçamento compatível com o “poder de fogo” de Hollywood, o que esteve longe de ser o caso de Aquarius. No entanto, o cinema made in Pernambuco, que ainda “corre por fora”, parece predestinado a surpreender, recolhendo elogios por onde passa. Ao que se sabe, não existe estrada mais bem construída do que a que se faz aos poucos e sem deixar dúvidas sobre aonde vai dar.