Em Foco 19.05

Generalizações que vilanizam categorias cometem injustiças e criam espaço para reações radicalizadas.

Vandeck Santiago (texto)
Estevam Avellar/ Globo (foto)

Governar é contrariar interesses, mas quando se vai fazer algo desse tipo é prudente pavimentar o caminho, procurar conversar com aqueles que ficarão “contrariados”, explicar, justificar e, sobretudo, evitar vilanizá-los. Quando há vilanização, significa que houve generalização – e o comportamento criticável de um ou outro é passado para o público como se fosse o comportamento da categoria. Imagine, por exemplo, o caso de um médico que vai ao seu local de trabalho só para bater o ponto e ir embora em seguida. Condenável, claro. Mas é uma injustiça afirmar que todos, ou a maioria, fazem isso. A generalização vilaniza uma categoria – e claro que esta categoria vai reagir contra quem, na visão dela, é responsável por isso.
Creio que um dos problemas, melhor dizendo, um dos grandes problemas do governo Dilma Rousseff no seu segundo mandato foi a animosidade contra ela de categorias poderosas (nas áreas de saúde, justiça e segurança). Demandas profissionais rejeitadas, visões de mundo divergentes e falta de diálogo, tudo isso junto, levaram algumas dessas categorias a posições de forte oposição ao governo. Peguemos o exemplo dos médicos. Em 11 de julho de 2013 a presidente vetou os pontos principais do projeto que regulamentava a profissão do médico, o chamado Ato Médico. A proposta fora aprovada na Câmara e no Senado. O argumento do governo é que, sem os vetos, a lei causaria profundo impacto negativo no SUS. Entre os pontos vetados estava o mais importante deles, na visão da categoria: o que definia como atividade específica do médico a formulação de prescrição terapêutica e o diagnóstico das doenças. Entre outros itens, foram vetados também o que estabelecia como atividade privativa do médico a direção e chefia de serviços da área e a indicação do uso de próteses e órteses. Em seguida, no mesmo ano, veio o programa Mais Médicos, com toda a polêmica que conhecemos. Nesse embate todo se sobressaiu a dificuldade de diálogo entre as partes e uma imagem passada à sociedade de que os médicos eram os “vilões” da história, com a generalização de atos condenáveis de alguns profissionais e de explicações em que eles ficavam no papel de “profissionais egoístas e insensíveis”. A categoria atribuiu a responsabilidade de tudo isso ao governo.
Poderia ser diferente? Não sei, talvez não. Mas, do ponto de vista da tática política, não se pode empurrar uma categoria contra a parede, a menos que se esteja tão forte que a reação dela seja absorvida e superada. Este cenário está repetindo-se agora, de forma mais ostensiva, no governo interino de Michel Temer. O alvo, desta vez, são os profissionais da cultura – que têm os artistas do audiovisual como principais nomes, mas que envolve uma série de trabalhadores e gestores em diversas atividades (música, arquitetura, pesquisa etc.).
Na polêmica do Mais Médicos, as críticas que se faziam aos profissionais contra o programa não eram tão desrespeitosas quanto as que se fazem agora contra os artistas que protestam contra o fim do Ministério da Cultura. Frases como “acabou a boquinha”, “esses artistas só querem mamar nas tetas do Estado”, “ideologia deles é dinheiro público”, e até xingamentos (“vagabundos”), estão sendo dirigidas contra artistas. Não por autoridades do governo, óbvio, mas por aliados governistas, e sem que sejam rechaçadas pelos novos integrantes do governo.
Esse tipo de postura já se manifestava antes do impeachment, contra artistas que se manifestavam contra o afastamento de Dilma. Agora se espalhou, no rastro da extinção do Ministério da Cultura, transformado numa Secretaria Nacional, e fundido no Ministério da Educação. Ontem eu vi uma das atrizes mais respeitadas do país, Fernanda Montenegro, que nunca foi uma ativista aloprada, dizer: “Isso é uma tragédia. E o presidente interino vai pagar um preço alto por essa visão de um ministério que é sempre dotado de um orçamento miserável, mas é a base de um país. Esse Congresso aí pode achar que é uma bobagem, uma frescura ou (coisa) de veados ou de alienados ou… Esse governo, até quando ele existir na atual conjuntura do Temer, vai sofrer um protesto violento, e eu estou neste protesto”.
Quando não há diálogo que pavimente a adoção de medidas que contrariam interesses, o que acontece? As vozes mais radicais se sobrepõem, e a disputa acaba puxando para as fileiras da luta até os ‘moderados’, que são contrários a conflitos mas que acabam sendo empurrados para participar dele – como Fernanda Montenegro, por exemplo. Já vimos como acaba esse tipo de batalha: quem está no governo perde.