Em Foco 22.05

Artista falecido aos 85 anos, no último domingo, era um dos mais talentosos e queridos do país.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

Ele veio ao mundo trazendo no sangue o DNA da música. Ah, isso não tenha dúvida: o pai, a quem os íntimos chamavam de Cadete, tocava violão, a mãe, bandolim; os irmãos eram instrumentistas, as irmãs, cantoras e o tio, ninguém menos que o festejadíssimo Nonô, homem a quem coube o privilégio de tornar popular o samba ao piano. Além disso, primo do cantor Ciro Monteiro. Dono de um vozeirão aveludado, o rapaz tinha crédito para escolher o estilo que bem entendesse, haviam de respeitar. E foi assim até domingo passado (15). O excesso de brilho na roupa, os penteados excêntricos, a vaidade sem economia, nada disso parecia destoar da personalidade de Cauby Peixoto, uma voz que o Brasil amou desde o fim dos anos 1940, quando ele resolveu começar por onde principiava a carreira de todo grande artista, naquela época – em programas de calouro no rádio. Aos 18 anos, cantava na Rádio Tupi, aos 20, gravou seu primeiro disco e aos 23 (1954) foi eleito o homem mais bonito do Brasil, por uma revista dos Estados Unidos. Santa ajuda ao desejo (não explícito, mas óbvio) de ser também lembrado pela capacidade de seduzir.
E seduziu mesmo, até norte-americanos acostumados a emprestar os ouvidos aos timbres vocais mais esplendorosos do planeta. Foi várias vezes ao país, entre 1955 e 1958, e em 1959 demorou-se por lá, fazendo shows e participações em filmes, durante 14 meses. Os “gringos” diziam que era o Elvis Presley brasileiro: magro, bem vestido (ainda longe do estilo ousado) e belo, com uma voz para poucos. Tão Elvis que, inclusive, teve, muitas vezes, as roupas rasgadas por fãs ensandecidas. Como esquecê-las? Foi para todas que Cauby encarnou o tipo irresistível, intérprete irretocável de um repertório marcante, que fez falta nos palcos, nos anos 1960, quando dedicou-se mais a administrar a boate Drink, comprada em sociedade com os irmãos, aos quais era muito ligado.
Com o pé novamente na música, na década seguinte, tinha a agenda movimentada por shows em programas de televisão e apresentações em capitais, inclusive no Recife. Era a época do Projeto Pixinguinha e as filas se estendiam por toda a Rua do Hospício, muitas vezes dobrando na Avenida Conde da Boa Vista. Ingresso quase a preço simbólico. Mas foi nos anos 1980, nas comemorações dos 25 anos de carreira, que as maiores homenagens começaram a ser rendidas, com destaque para aquela prestada por um time de ouro da Música Popular Brasileira. Sentiu-se o máximo ao receber letras feitas especialmente para ele por estrelas como Tom Jobim, Caetano Veloso, Roberto e Erasmo, todas incluídas no disco Cauby, Cauby, enriquecido ainda com Bastidores, o sucesso que, depois de Conceição, mais o identificaria. A música de Chico Buarque não fora feita para ele, porém caiu como uma luva no repertório dramático. Era cantada com tamanho sentimento que acabou ofuscando a interpretação do autor.
Na última década de vida – recebendo, como sempre, os cuidados da fã transformada em amiga e empresária, Nancy Lara –, o artista se apresentava em um bar na antológica esquina das avenidas Ipiranga e São João, em São Paulo, cidade que elegeu desde cedo para morar. Casa cheia o tempo inteiro, gente sem conseguir ingresso. Em 2015, depois de se transformar em estrela do documentário mais rentável do ano, Cauby – Começaria tudo outra vez, resolveu revelar a bissexualidade. Embora não fizesse a menor diferença, dado que a orientação sexual de cada um não interessa a ninguém, poucos encarariam tal confissão pública, aos 84 anos. Mas ele não era exatamente uma pessoa que tivesse desistido de surpreender, com o passar do tempo –bastava olhar para o mesmo brilho na roupa e na voz. Era Cauby, afinal.