A preocupação com os alagamentos no Recife vem de longe. A primeira enchente oficialmente registrada na cidade foi a de 1632, com a “perda de muitas casas e vivandeiros estabelecidos às margens do Capibaribe”. Seis anos depois, Maurício de Nassau ordena a construção do Dique de Afogados, a primeira barragem no leito do rio para evitar as inundações constantes. Com dois quilômetros de extensão, estaria localizado hoje onde é a Rua Imperial.
Mais de dois séculos depois, o Recife enfrentaria em 1854 uma de suas sua maiores enchentes da história. Foram 72 horas de chuvas, isolando a capital do interior, além dos navios indo ao encontro uns dos outros e da queda da muralha que guarnecia a Rua da Aurora.
Em 1869, uma nova enchente destruiu pontes e acabou sendo retratada pelo pintor pernambucano Teles Júnior (1851-1914). Intitulada “Cheia dos Remédios”, a tela pertencente ao acervo do Museu do Estado mostra o desespero das pessoas em uma Estrada dos Remédios submersa. Cena que tristemente se repetiu nesta segunda-feira, 30 de maio de 2016. E voltará a ocorrer nesta cidade que não soube tirar proveito dos seus próprios recursos naturais.
No dia 28 de agosto de 1855, o Diario de Pernambuco publicou um relatório do presidente da Comissão de Higiene Pública, Joaquim D’Aquino Fonseca, intitulado “Bases para um plano de edificação da cidade”. Se o que ele defendeu há mais de 160 anos fosse cumprido, a capital pernambucana talvez não passasse por mais um dia de alagamentos: “Convém que as vias públicas possam ser percorridas com facilidade, mas também que, escoando-se com presteza as águas de chuva e mesmo as que procedem de certos usos domésticos, se conservem secas e não lamentas, constituindo verdadeiros charcos, como sucede nesta cidade durante o inverno ou depois de copiosas chuvas”.
No relatório foi apresentando à Câmara Municipal do Recife. Joaquim D’Aquino Fonseca já lamentava a extinção dos “mangues e pântanos” que se estendiam de Olinda ao Rosarinho, de Afogados a Piranga, que melhoravam o estado sanitário da cidade e eram escoadouro natural das águas da chuvas. Mas o Recife crescia e era preciso cuidar das novas construções, dos esgotos e das vias públicas.
Um ano antes deste relatório, o Diario havia publicado, na seção “Comunicados”, dois textos onde um colaborador não identificado criticava um Recife que não sabia como lidar com as enchentes. No dia 22 de junho de 1854, a cidade havia sido ameaçada por uma inundação “como nunca se havia visto”, com parte dos bairros de Santo Antônio e Boa Vista coberta de água por espaço de algumas horas. O que vivenciamos hoje neste mesmos locais, em pleno século 21, é reflexo dos aterros feitos de forma contínua e desordenada.
“Fora esta a maior das inundações do Capibaribe e do Beberibe, visto que hoje os desaguadouros destes dois rios estão reduzidos, por uma imprevidência indesculpável, a pequenos canais, bem por sucessivos aterros ou por construções, que têm obstruídos todas as saídas das águas”, destacava o autor dos comunicados publicados no jornal em 29 de julho e 2 de agosto de 1854.
“Do lado do Rio Capibaribe, as águas que vinham ter ao Arraial escoavam por Parnamirim (Paraná-mirim, ou mar pequeno), que era uma espécie de lago espaçoso e profundo, e tão profundo que por ali levaram os holandeses suas canhoneiras com grossa artilharia para atacar o arraial de Santa Cruz. Esse lago ou leito está completamente obstruído, e as águas buscam diversas direções pela ignorância daqueles que supõem que podem fazer mudar as leis da natureza impunemente. Em geral, o leito do Capibaribe era muito mais largo e profundo, tanto que ainda em nossos dias, mesmo no verão, em muitos poucos lugares até o Caxangá dava passagem a vau”.
As margens do Capibaribe eram cobertas por mangues e ingazeiras. Com a derrubada da vegetação, a insolação expôs as coroas, os cômoros de areia, e depois a obstrução completa do antigo leito. “Tendo-se formado outro por incúria ou desleixo de quem devia zelar nos interesses públicos, e também por estúpida ambição dos particulares, que viam nestes cômoros uma dádiva do céu, que aumentava o seu terreno.
O Capibaribe foi perdendo, literalmente, terreno. Há quase 200 anos, desaguava por todo o espaço onde hoje existe o aterro do matadouro junto ao Forte de Cinco Pontas até a casa do intendente em Afogados. “Obstruído o desaguadeiro dos Afogados e diminuído o da Boa Vista em uma proporção tão espantosa, porque nos havemos de admirar dessas enchentes ou dessas inundações, a que dão causa a nossa imprevidência ou a nossa ignorância?”.
Além de ser uma pequena aula de como se deu a ocupação urbana do Recife, o comunicado publicado no Diario em 1854 não deixa de ser tristemente atual, já que o autor encerra dizendo que é necessário “volver sobre nossos passos, emendando quanto for possível nossos erros e preparando um porvir mais risonho e mais lisonjeiro”. Por enquanto, é melhor ver o que diz a previsão do tempo.