Em Foco 31.05

O
que acontecimentos separados por mais de 40 anos têm a dizer sobre a situação dos nossos dias.

Vandeck Santiago (texto)
Nelson Almeida/ AFP (foto)

Os políticos se parecem nos defeitos. Eles se diferenciam é nas virtudes.
Getulio Vargas nomeou um amigo para um cargo cobiçado. Tinha tanta confiança nele que lhe recomendou diretamente:
– Quando quiserem lhe corromper, me avise.
Algum tempo depois recebeu mensagem do amigo: “Presidente, por favor me demita urgente. Os homens estão chegando no meu preço”.
O caso faz parte do folclore político nacional, e, se aconteceu exatamente assim, aparentemente teve um final feliz. Mas imaginemos que o desfecho fosse diferente – já pensaram o estrago capaz de ser feito por um amigo do presidente, em um cargo estratégico?…
Agora vejamos outro caso, dos dias atuais, e relato histórico. Está no segundo volume do livro de memórias de Fernando Henrique Cardoso (Diários da Presidência – 1997-1998), lançado semana passada. Revela a pressão conjunta de três líderes políticos do PMDB para nomear o diretor não de uma grande estatal, ou de algum ministério político importante: “[Um político próximo ao presidente] foi procurado pelo Michel Temer, pelo Jáder Barbalho e pelo Geddel, que querem mudar o diretor do departamento de presídios do Ministério da Justiça”.
A pressão surpreendeu o presidente, que escreveu: “Me pareceu um tanto estranho que três dos principais líderes do PMDB queiram mudar um posto tão baixo e no qual existem licitações. Não quero me antecipar com maledicências, mas me deu uma ponta de preocupação”. Mais adiante ele cita outro caso semelhante: “O Geddel e o PMDB fizerem uma espécie de imposição: ou se nomeava o diretor do DNER [Departamento Nacional de Estradas de Rodagem] de Minas ou não me dariam os votos. A coisa de sempre”.
Estes acontecimentos são de 17 de junho de 1997. Façamos as contas e atualizemos as biografias: 19 anos depois, os três citados por FHC continuam atuando com destaque na política nacional. Michel Temer é presidente interino da República; Geddel Vieira Lima é ministro do governo dele, e Jáder Barbalho é senador (PA) e um filho dele é ministro do mesmo governo. Não chegaram ao poder neste momento; já estavam lá na administração petista.
Separadas por mais de quatro décadas, as duas histórias são ilustrativas do ambiente na política. Dizem respeito a Getulio e FHC, mas todo presidente (ou governador, ou prefeito) tem histórias semelhantes para contar. Não é que todo político calce 40; mas é inegável como se parecem nos defeitos. Quanto mais defeitos tiverem, mais danos são capazes de causar. Entre si, eles sabem quem é quem – mas todos convivem como personagens da mesma história, ocupando os mesmos espaços, e em um ambiente no qual os defeitos são separados das virtudes por uma pequena ponte. Muitas vezes migram de um lado para outro movidos pelas imposições que a política lhes faz.
A forma como a política está estruturada hoje favorece pressões e atos como aqueles testemunhados por Getulio e FHC. Vai do micro (como a mobilização de caciques para colocar em cargos aparentemente inexpressivos pessoas de sua confiança) até o macro. É impossível, hoje, qualquer governo ter apoio majoritário no Congresso sem brindar aliados com obras públicas e cargos, diz um especialista no assunto, o norte-americano Barry Ames, professor de Ciência Política da Universidade de Pittsburgh (EUA) e pesquisador das nossas instituições desde o período da ditadura militar.
Da forma como está montado, o sistema político do Brasil depende da corrupção para funcionar, diz ele, que é autor de Os entraves da democracia no Brasil (FGV, 2003). É um engano também pensar que a corrupção hoje é menor do que antes, afirma o cientista político. “Acho que a escala da corrupção envolvendo a Petrobras é certamente maior do que era em 2000. Mas minha aposta é que a quantidade roubada no período militar era ainda maior que a roubada hoje”, diz ele, em entrevista à BBC. “A grande diferença é que, numa democracia, os jornais e outros tipos de mídia estão muito engajados em expor a corrupção”. Na opinião de Barry Ames, pelo menos três medidas são necessárias para tentar solucionar o problema: acabar com o oligopólio na área da construção civil (“que facilita conluios entre governo e empreiteiras”, conforme a matéria da BBC); reduzir o número de partidos no Legislativo (que dificultam as coalizões) e criar um sistema com menos distritos eleitorais (assim os eleitores poderiam fiscalizar melhor os eleitos).
O fato é que, se não aproveitarmos o momento para modificações profundas no sistema, os políticos semelhantes nos defeitos estarão sempre batendo à porta dos presidentes, e entrando, e na maioria das vezes conseguindo o que querem.