08.06

Convém desconfiar de heróis que surgem de repente; nem sempre são o que aparentam ser.

Vandeck Santiago (texto)
Cassiano Rosário/Futura Press (foto)

Se houvesse uma vacina contra falsos heróis, todos nós deveríamos tomá-la, obrigatoriamente. Por que eles surgem sobretudo em épocas de crise, viram máscaras de carnaval, posam para fotos ao lado dos espertos de sempre – e algum tempo depois a gente olha e vê que o heroísmo antes propalado assentava-se sob embustes. Olhem só agora o caso deste cidadão que ficou conhecido como “o Japonês da Federal” – em passeatas contra o governo e em imagens na mídia, ele aparecia como um personagem de policial exemplar, que estava sempre algemando malfeitores. Pois bem, ele foi preso ontem, pela PF, acusado de facilitar contrabando. O processo transitou em julgado, ou seja, é definitivo, não cabe recurso.
Vou tornar a falar do “Japonês da Federal”, mas antes permitam-me um corte no tempo. Viajemos para 1988. Eu era repórter da Veja, na sucursal do Recife, e acompanhei passo a passo a ascensão de Fernando Collor, do governo de Alagoas à Presidência, em 1989. A sucursal do Recife era o ponto inicial da cobertura das ações de Collor. Logo no começo do seu governo, em 1987, ele foi personagem de destaque em um Globo Repórter, da TV Globo, em 2 de abril, e de uma grande matéria no Jornal do Brasil (RJ), 5 de abril, época em que o jornal era um dos mais influentes do país. Em 23 de março de 1988 foi capa da Veja, com o título de Caçador de Marajás.
Não critico o trabalho dos colegas envolvidos nessas produções; eles não faziam parte de uma conspiração naquele momento para levar Collor à Presidência anos depois. Na época a questão do funcionalismo nos estados (não só em Alagoas) era um descalabro (gente recebendo sem trabalhar, repartições com muito mais funcionários do que necessitavam etc.). E Collor encarnou com perfeição o papel de combatente desse problema. Além do mais, era uma “cara nova” – um novo personagem em um cenário ocupado por antigos nomes (alguns ainda estão aí, como José Sarney). “Caras novas” atraem a atenção do público, e a mídia precisa da atenção do público.
No livro Notícias do Planalto (Cia. das Letras, 1999), o jornalista Mário Sérgio Conti conta a história em detalhes. Não se trata de um nome qualquer: Conti foi diretor de redação da Veja entre 1991 e 1997. Hoje tem programa de entrevistas no canal GloboNews. O livro ganhou o Prêmio Jabuti de Melhor Reportagem, em 2000. Ele reproduz trecho de abertura do JB na matéria sobre Collor, que mencionei antes. Vejam:
“Como impetuoso lutador faixa-preta de karatê que é, ele investe com golpes fulminantes e certeiros contra vários adversários ao mesmo tempo. Só a devassa que determinou contra os inacreditáveis marajás do funcionalismo público local já seria suficiente para catapultá-lo ao primeiro plano da política nacional, como de fato aconteceu. Mas isso é pouco para o mais jovem governador de Estado do Brasil. Imprimindo velocidade de furacão a uma gestão que mal chegou a três semanas, ele mandou reabrir os primeiros e empoeirados inquéritos sobres os 800 assassinatos impunes cometidos pelo ‘sindicato do crime’, partiu para o saneamento das falidas finanças do Estado, desafia o poder dos usineiros do açúcar que dominam 70% da economia alagoana e, de quebra, tem pronto para detonar um plano de reforma agrária que pode servir de modelo para o país”.
Parece mais um hagiológio, aquele nome que se dá à descrição da vida dos santos, do que trecho de uma peça jornalística. Na maior parte da cobertura que se fez de Collor, eram negligenciados fatores importantes para definir quem era o político Collor: fora prefeito de Maceió indicado pela ditadura, em 1979; tivera uma convivência tranquila com os políticos que agora combatia; na última semana como prefeito nomeara três mil funcionários (ele disse que assessores lhe enganaram, dando-lhes papéis que assinou sem ler), e votara em Paulo Maluf nas eleições indiretas de 1984. Não é que em todas as matérias, de todos os veículos, estes fatores não fossem citados; até foram, mas em um tsunami de abordagens favoráveis, as desfavoráveis viram uma jangada pequena incapaz de resistir às ondas.
A bem da verdade, diga-se que nem todos são anestesiados pelo fenômeno. Tanto no caso do “Japonês da Federal” quanto no de Collor (os dois exemplos citados aqui), uma parcela da sociedade posicionou-se em ângulo contrário e apontou para os pés de barro deles. O problema é que isso não é feito na proporção que deveria. As informações sobre os problemas do “Japonês” na PF eram conhecidas; foram publicadas por alguns veículos. Mas para as pessoas que estão buscando heróis capazes de desferir golpes em quem consideram vilões, que importa uma jangada ao sabor do vento?
O fato é que não importa quem seja o personagem agraciado da vez – um político, um juiz, um sindicalista, um policial, um jornalista. É preciso sempre encararmos com ceticismo aqueles que de repente são ungidos como heróis – muitos deles são movidos por interesses que não aparecem à primeira vista, e muitos têm na própria trajetória a comprovação de que não são o que aparentam ser.