09.07

Mercado de brinquedos ignora representatividade no Brasil, onde 53% da população é parda ou negra.

Silvia Bessa (texto)
Peu Ricardo (foto)

Um dia, entre seus três e quatro anos, ao abrir os olhinhos da ingenuidade para os porquês, Ester resolveu questionar a ausência de bonecas negras no comércio. Nunca recusou as bonecas brancas que ganhava de presente, mas sempre desejou uma de cabelos cacheados, que se parecesse com ela mesma e com a mãe, Beca Nascimento. Até que Ester completou seis anos. Beca, de 28 anos, passou três meses juntando economias para realizar o sonho de Ester.
Feliz, saiu de casa rumo à compra. Peregrinou por três shoppings do Recife em busca do objeto de desejo da filha. Para sua decepção, não achou a boneca da propaganda da televisão. Porque bonecas negras são raridade no mercado de brinquedos do Brasil, país onde 53% da população se declara negra ou parda. “Só encontrei a boneca Baby Alive branca, gerências gaguejantes e pedidos de desculpas ao me ouvirem perguntar quando foi feito o último pedido ao fornecedor e questionar o motivo da não solicitação dessas bonecas e se elas também fazem parte da linha”, relatou. A marca de boneca que Ester queria era a da moda. Custa na faixa de R$ 200 a mais barata e sua propaganda anuncia que ela come, bebe, faz xixi e cocô, como um bebê.
Durante a peregrinação, um vendedor chegou a dizer que a branca “era a mesma coisa”. Não. Não é, deve-se dizer a ele e a todos que assim entendem. É questão de espelhamento, é representatividade. Beca voltou para casa frustrada e sem o brinquedo, até que vieram novos questionamentos por parte de Ester: “Por quê eles não têm na loja?”. Difícil explicar para uma criança – negra, parda ou branca – esta falta de representatividade de uma cor de pele presente nas ruas. “Não sei, filha. Só sei que está errado”, foi o que ela disse.
Só com o tempo Ester vai entender que a discriminação racial está enraizada na nossa cultura e, assim, de forma indireta e precocemente vai afetando a formação de adultos. “Para a criança, brincadeira é coisa séria. Como ela terá uma boneca loira como filha no imaginário dela?”, comentou a mãe, reproduzindo dúvidas da sua menina. Beca Nascimento é jornalista, e, há pouco, lançou um canal no Youtube chamado Beca com Cê. Nele, trata do empoderamento feminino e de questões negras.
Quando Ester chegar ao amadurecimento, fará uma relação entre o tempo de entrega pelos Correios estimado em 22 dias para que a compra feita a um site chegasse à casa da família, a falta de bonecas negras nas prateleiras, a ingerência pela oferta de bonecas negras, o racismo, a contribuição de cada um para uma educação justa, a equidade no tratamento entre negros e brancos no país.
“Os brinquedos são fundamentais no processo de formação. Eles fazem parte da identidade das crianças. Eu mesma demorei muito para entender que eu não era moreninha. Eu era negra”, afirma Beca Nascimento, que fez um relato na sua página do Facebook e recebeu apoio de outras mães que se ressentem da falta de opções que ajudem a quebrar preconceitos. “Sou negra, mãe de uma criança branca e que tem bonecas negras como a mãe. E já ouvi uma vizinha dizer que ela merecia uma boneca mais bonita. Pode?”, emendou uma amiga. “Me lembro até hoje como eu era com 3 ou 4 anos. Não sou negra, sou parda, mas mesmo assim eu me sentia excluída. Eu chorava porque não queria ser ‘marrom’, queria ser branca e chorava porque meu cabelo não era liso, era cacheado”, contou Beatriz Matarazo.
Beca tem razão quando diz que não aceita o “descaso e falta de consciência das pessoas”, apesar de ponderar que entende a não compreensão. “A gente precisa mais é levantar o debate mesmo, mas tem hora que cansa muito”. A boneca de Ester chegou esta semana e foi amor à primeira vista. Com ela, a menina dorme abraçada e a leva para passear na casa da avó. Deu à boneca o nome de Bia, homenagem à bisavó negra de quem ouve bonitas histórias. Bia está ao lado das demais bonecas negras, feitas de pano, que compunham a pequena coleção de Ester até então.