10.07Há 36 anos, o autor de “Soneto da fidelidade” dizia adeus, deixando legado inesquecível.

Luce Pereira (texto)
Editoria de arte (ilustração)

Se não tivesse existido o tempo em que amigos e amores eram fundamentais, existiu um poeta que sentia assim. E de tanto insistir neste sentimento com aquela força, levou um país a amar. O poeta se foi há 36 anos e – parece – carregou com ele o tempo onde, também, luas e entregas compunham a esperança, o desejo de ver bem de perto a felicidade, ainda que nem o próprio acreditasse piamente que existisse. A questão é que Vinícius de Moraes faz falta. Acreditar no amor tal como descreviam seus versos e mesmo os seus passos no mundo, faz falta. Sim, faz. Mas, embora a manhã de 9 de julho de 1980, quando ele se foi, tenha fechado as cortinas de uma época na qual o amor e a camaradagem derramados significavam mais do que moda, quase uma filosofia de vida, surge agora menos ingrata. O descompasso entre realidade e sentimento, nos dias de hoje, poderia produzir um Vinícius amargo ou sombrio, dois adjetivos para os quais não nasceu. Era de uma alegria vertiginosa e calma, que criava em torno dele poderosa energia de comunhão – daí porque tornava-se facilmente amigo e amante inesquecível.
Nove mulheres, incontáveis amores. Mulheres como combustível de uma poesia doce e confessadamente humana, dessas que não constrangem o poeta quando ele se declara frágil, perdido, dependente. Se resistisse até os dias de hoje, como se sentiria Vinícius vendo o tratamento grosseiro e perigoso dispensado ao gênero que mais reverenciou com versos de extrema beleza? Pensando assim, bendita a sobressaltada manhã de 9 de julho, que não foi de carnaval, mas de missão cumprida. Àquela altura, não havia dúvida, tinha sido o que milhões de pobres mortais jamais ousariam sonhar: respeitado em tudo com o que se envolveu profissionalmente – da atividade literária à música e à diplomacia -, amado por quem entrasse em sua vida, de forma transitória ou definitiva. Era, portanto, veículo do amor incondicional; aquela pessoa que ama não só em termos românticos, mas se sente inclinada a amar a humanidade, as coisas e eventos da vida; que descobre graça e sentido em tudo que é pequeno, até mesmo falho.
Como não sentir saudade daquele Vinícius, quando se vive dias extremamente competitivos, de amores descartáveis, de individualismo exacerbado? Fez bem em partir, o “Poetinha”, assim chamado por um de seus maiores amigos, o pernambucano (e também genial) Antônio Maria, cronista dos mais incensados pela crítica. Eram quase gêmeos siameses na forma como viam e sentiam a vida, no jeito de suportar desacertos e celebrar encontros e despedidas. Quem leu a carta de Vinícius descrevendo a dor de perder o “seu” Maria, vítima de infarto fulminante aos 43 anos, na calçada de um bar, imagina o que sentiu aquela gente íntima do poeta ao saber de sua morte.
“(…) Ah, que dor! Agora correm-me as lágrimas, e eu choro embaçando a vista do teclado onde escrevo estas palavras que nem sei o que querem dizer…
“(…) Não irei ao seu enterro, meu Maria. Daria tudo para ter estado ao seu lado na hora, para lhe dar a mão e recolher seu último olhar de desespero, de maldição para esta vida a que você nunca negou nada e o fez sofrer tanto. Daqui a pouco o sino da casa-grande tocará para o almoço. Verei minha mulher descer, triste de eu lhe ter dito (porque ela dorme ainda, meu Maria…) e de me deixar assim sozinho, sentado à máquina de escrever, com a sua morte enorme dentro de mim”, dizia o Poetinha, no fim do texto.
Amigos despertaram cedo, na Zona Sul do Rio, aturdidos com a notícia dada por telefone, e se sentiram velhos chorando com a cabeça entre as mãos, sentados à beira da cama, incrédulos. É que a alegria e a poesia de Vinícius colocavam-no, aos olhos de quem o acompanhava de perto, num seleto grupo de alvos tardios da morte: ela, sensibilizada com o amor extremo que o poeta tinha à vida, iria fazendo de conta que ele nem existia, até que o tempo recolhesse palavras e sensações registradas em sua memória. Porém, esqueceram-se todos que a morte também pode ser fascinada por donos de versos que falam de amores infinitos enquanto durem.