28.07

As perigosas consequências do assassinato de um padre por terroristas do Estado Islâmico.

Vandeck Santiago (texto)
AFP (foto)

Este cidadão da foto é o padre Jacques Hamel. A morte dele por terroristas, anteontem, foi tratada como “mais um atentado” ocorrido na França. Há razões para supor que é algo mais do que isso. Padre Jacques foi assassinado dentro de sua igreja, enquanto celebrava missa. Degolado. Os dois agressores que cometeram o crime se autoproclamaram integrantes do Estado Islâmico. Ambos foram mortos pela polícia. É a primeira vez que uma igreja é atacada diretamente pelo grupo terrorista, no Ocidente.
O ataque tem um potencial explosivo cujas consequências vão além da natureza de “mais um atentado”. Como se uma linha amarela que até então todos respeitassem tivesse sido perigosamente ultrapassada. Primeiro, por ter como vítima um padre, e um padre de 86 anos; segundo, pela profanação da igreja e da cerimônia religiosa; terceiro, pela forma como se deu, o degolamento. Os simbolismos que o ato infame carrega levam à constatação de que o alvo foi não um governo, não alguém diretamente envolvido no conflito, não uma pessoa – mas uma instituição, a Igreja Católica. É natural que, no mundo inteiro, todos os católicos se sintam diretamente atingidos.
Claro que um crime bárbaro desses atinge a humanidade inteira, os que têm credos (quaisquer que sejam eles) e os que não os têm. Mas é claro também que aqueles que frequentam, ou frequentaram, igrejas podem sentir o impacto do gesto de forma diferente – por estarem mais familiarizados com a liturgia da cerimônia, com o papel desempenhado pelo seu condutor (o padre), pela reverência que se tem a um templo religioso.
Na figura do padre Jacques vemos todos os padres que de uma forma ou de outra ficaram em nossa memória. A notícia me fez lembrar de imediato, por exemplo, um que foi muito importante nos primórdios de minha carreira: o padre José Maria, de Pesqueira (PE), devoto das transformações sociais, incentivador dos jovens, uma das pessoas mais tolerantes e compreensivas que conheci. E de outro cujo nome não recordo, celebrante da missa das 18h na catedral do Sacré-Coeur, em Paris, numa época em que eu procurava o lugar dos bancos da igreja que ficasse mais próximo do coroinha quando ele passava balançando o turíbulo, na esperança de que o calor e o odor do incenso em brasas trouxessem conforto para a barriga vazia e o corpo com frio.
Padre Jacques estava aposentado desde 2005 (padres têm direito a aposentar-se aos 75 anos), mas continuava trabalhando em sua paróquia, em Saint-Etienne-du-Rouvray, pequena cidade do norte da França, com pouco mais de 30 mil habitantes. É certo que por causa do seu assassinato não teremos declarações de guerra dos cristãos, mas não há dúvidas da onda de indignação que o crime despertou entre estes. Jornais da Europa fizeram eco ao clamor nas suas edições de ontem, colocando nas capas o atentado como assunto principal (em alguns veículos, único), e referindo-se a ele com palavras como “profanação” e tratando seus autores como “bárbaros”.
São palavras que remontam a períodos de guerras religiosas, mas a imprensa francesa e líderes políticos e religiosos tiveram a precaução de não estimular sentimentos de vingança. Em editorial de primeira página, o La Croix, jornal católico francês, fundado por um padre no século 19, afirmou: “Mas nosso clamor a Deus é também um pedido de ajuda para resistir à tentação da vingança”, acrescentando que “responder ao ódio com o ódio é o triunfo do Mal”. No tradicional (e não-religioso) Le Monde, o tom foi o mesmo, traduzido no editorial “Resistir à estratégia do ódio”.
Esta é a posição do bom senso. É a ela que devemos nos apegar, na esperança de que a barbárie não acabe tragando a todos nós.