Em Foco 03.08

Ex-violinista da Orquestra Criança Cidadã foi atraído pelo tráfico e acabou morto, na noite de segunda-feira.

Luce Pereira (texto)
Samuca (arte)

Era 31 de outubro de 2014, uma sexta-feira, e jovens reunidos em um projeto de resgate social iriam tocar, pela primeira vez, para um pontífice. Quando o simpático papa Francisco entrou na Sala Paulo VI, no Vaticano, foi recebido ao som de Jesus Cristo alegria dos homens, de Johann Sebastian Bach, e logo tomou-se de entusiasmo – pela música, pelo talento dos 44 músicos e pela forma como, a despeito de todas as adversidades, o grupo conseguiu chegar ali. Cumprimentando a todos enquanto ouvia o hino do seu clube de coração, o argentino San Lorenzo, Francisco aconselhava que continuassem fazendo boa música. Mas nem todos ouviram. Em maio último, Moysés Gonçalves, que aparece muito sorridente em fotos da época, agarrado ao violino e embevecido com o carisma do anfitrião, afastou-se da Orquestra Criança Cidadã Meninos do Coque e da possibilidade de sobrevivência em um dos bairros mais violentos do Recife, onde ainda morava com mais quatro irmãos e os pais. Na noite de segunda-feira, foi emboscado e morto por traficantes, depois de se transformar em um deles.
Ali, no esplendor do Vaticano, vivendo um privilégio e a chance de sentir aonde a música poderia levá-lo, o rapaz de 19 anos estava longe de ouvir os ecos da complexa realidade vivida no bairro do Recife onde a orquestra nasceu, em 2006, e na qual ingressou aos onze. Tanto se envolveu com as atividades no grupo que chegou a ser monitor e a tomar parte em inúmeras apresentações, além de assistir ao reconhecimento cada vez maior do trabalho, traduzido pelos mais de 20 prêmios ganhos, entre eles um da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2010. Como todos os alunos, Moysés passava cinco horas do dia no projeto e ali ouvia notícias sobre aqueles que se destacaram e iriam participar de intercâmbios na Europa, em países onde a música tem status de obra divina, como a Alemanha, a República Tcheca, a Áustria e a Polônia. Muitos foram, por que sua vez também não chegaria? Ela nunca veio. Em lugar de seguir colocando tijolos na construção que o projeto alicerçou, Moysés, à revelia dos conselhos de familiares, orientadores e amigos conquistados na Orquestra, preferiu ir em busca do caminho do qual havia sido salvo ao tomar nas mãos um violino.
Parece um contrassenso (agora mais ainda) que mãos que arrancaram notas musicais tão precisas, capazes de fazer um papa sensível como Francisco demonstrar entusiasmo contagiante diante de mais de 600 pessoas presentes à 16ª Conferência Internacional da Fraternidade Católica, pudessem ser desvirtuadas pelas drogas. Mas foram. Abalado, o pai, também Moysés, diz que inúmeras vezes pediu ao filho para não se envolver com o mundo do tráfico, mas não foi ouvido. Vivia apavorado com a possibilidade de perdê-lo para a criminalidade, o que quase já havia acontecido no dia 27 de julho quando o rapaz sofreu a primeira emboscada e recebeu um tiro no peito entre os cinco disparados por dois homens que, numa moto, o perseguiram pela rua onde morava. Na hora do sepultamento, ontem, segurando a foto do papa trazida como lembrança da apresentação no Vaticano, Moysés, o pai, buscava resposta para uma pergunta que a maior amiga da violência, a impunidade, provavelmente, não vai permitir ser encontrada: “Por que mataram meu filho?”.
É um desafio sem tamanho para qualquer jovem sobreviver à dura realidade em bairros violentos do Recife, com armadilhas colocadas pelo tráfico em cada esquina. Uma vez atraídos por elas, mesmo o som mágico da música pode se perder entre os berros por dinheiro e as ameaças para consegui-lo. Há pouco tempo, Moysés havia se desentendido com os criminosos por causa de um cordão de prata. Difícil reconhecer ali o rapaz que, encantado, atendeu ao pedido do papa e tocou a ária de Hendel Eu sei que meu redentor vive. Difícil, sim. Mas difícil mesmo é imaginar que na guerra desigual pela sobrevivência, violinos sempre correrão o risco de serem vencidos pelas armas covardes do tráfico.