09.08

Quando a conquista do outro causa incômodo naqueles que desejavam só para si o sucesso da vitória.

Vandeck Santiago (texto)
Thomas Coex/AFP (foto)

A situação está tão tensionada nestes Jogos Olímpicos que até o acendedor da pira olímpica está sendo contestado – algo que nunca aconteceu antes em toda a história das Olimpíadas. A bem da verdade, diga-se que neste caso a contestação não é nossa; vem de fora. O primeiro a fazê-lo foi o ex-padre irlandês Cornelius Neil Horan, que a imprensa costuma qualificar de “lunático”. Se a história ficasse aí, poderíamos tratar o episódio apenas como uma excentricidade. Não ficou, porém. Um outro personagem acaba de entrar no caso: nada menos que o medalhista de ouro na maratona na Olimpíada de Atenas, o italiano Steffano Baldini.
Para entender como o ex-padre lunático e o italiano vitorioso entraram nesta história, façamos uma breve recapitulação. Quem acendeu a pira olímpica no Rio foi o corredor brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima. Na maratona dos Jogos de Atenas 2004, ele liderava a prova com uma vantagem de cerca de meio minuto sobre o segundo colocado, Baldini, e um pouco mais sobre o terceiro, o norte-americano Meb Keflezighi. Faltando sete quilômetros para o final, Neil Horan o agarrou, impedindo-o de continuar. Ele foi ‘solto’ por um espectador grego. Àquela altura, porém, Vanderlei já perdera 13 segundos, no qual não avançara sequer um metro. (Àquela altura o irlandês já era ex-padre; fora expulso em 2005 em virtude de ‘profecias’ que fizera sobre o apocalipse). Apesar do choque físico e psicológico, Vanderlei continuou correndo. Foi ultrapassado pelos dois corredores mais próximos e acabou em terceiro, ganhando a medalha de bronze. Pelo espírito esportivo que demonstrou, ganhou a Medalha Pierre de Coubertin, maior condecoração concedida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI).
Quem venceu a maratona foi Stefano Baldini. A cena de Vanderlei acendendo a pira da Rio 2016 foi vista no mundo todo; na Itália Baldini escreveu artigo para um jornal esportivo local, La Gazzetta Sportiva, afirmando que ficou “emocionado” ao vê-lo pela TV na cerimônia de abertura. “Mas isso de que [ele] ia ganhar não é verdade. Íamos alcançá-lo com certeza. Teria ficado em terceiro da mesma forma, por isso, no fundo, tem que agradecer ao louco, porque caso contrário ninguém se lembraria dele”, afirmou Baldini.
Não sou especialista em esportes; a área que acompanho mais de perto é a política. Ao longo de minha carreira aprendi que na política o sentimento mais sincero vem depois que a pessoa fala “mas”. É assim, prestem atenção para quando vocês ouvirem algo semelhante: o político elogia um adversário ou aliado (“É pessoa competente, com as qualidades necessárias para ocupar qualquer cargo no país…”), e logo em seguida tasca um “mas…”. Pronto, pode ter certeza que o verdadeiro sentimento sobre o outro vem a seguir.
Não sei se no esporte é a mesma coisa. O “mas” do Stefano Baldini, porém, parece mais revelador do seu sentimento do que tudo que disse antes. Doze anos depois da prova, ele ainda quer deixar o Vanderlei para trás. A tal ponto que prevê que até o corredor que estava em segundo lugar o ultrapassaria. E a frase com que arremata seu raciocínio também denota contrariedade: “No fundo, [Vanderlei] tem que agradecer ao louco, porque caso contrário ninguém se lembraria dele”.
A frase é semelhante a do ex-padre, que em entrevista ao New York Times, afirmou: “Quando o vi [acendendo a pira], eu realmente fiquei com raiva. Eu olho para Vanderlei e penso; você não seria nem de perto essa estrela se não fosse por mim”. Para um jornal australiano, afirmou: “Ele não percebe que fui a providência naquele dia. Sem mim ninguém saberia quem é Vanderlei. Sem mim, ele nunca teria acendido a pira…”.
Ontem, em matéria sobre o caso, o El País tratou a reação do ex-padre e do atleta italiano como… inveja. Pura e simplesmente inveja. “A história poderia ser contada não como uma parábola do espírito olímpico, (…) mas como uma alegoria da inveja”, escreveu o jornal espanhol.
Não vi a réplica do Vanderlei sobre as opiniões do ex-padre e do maratonista italiano. Mas encontrei esta frase dele de 28 de agosto de 2014 (vejam que esta história se não surgiu agora…), sobre quem teria ganho a prova de Atenas se o incidente não tivesse acontecido: “O impacto físico e psicológico do que ocorreu foi muito grande. Em situação normal, eu poderia não ganhar o ouro, mas a disputa iria para a final da prova, com certeza. Eu jamais vou dizer que seria o campeão. Não vou usar de um palavreado que o próprio Baldini adotou e foi infeliz. Jamais vou subestimar os demais adversários, ainda mais se tratando de uma situação que não aconteceu”. Doze anos depois do incidente, Vanderlei se mantém à frente dos que querem impedi-lo de chegar em primeiro.