10.08

 

O ouro da judoca Rafaela Silva é prova de superação e do quanto fracassamos como sociedade.

Luce Pereira (texto)
Francisco Medeiros (foto)

Ela não ria. Não ria por nada. Não enquanto não visse as adversárias vencidas, uma a uma, por wazaris que exigiram um aprendizado tão sofrido quanto foi passar a infância sendo perseguida pelos fantasmas da pobreza e da violência, na comunidade onde nasceu – Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio de Janeiro, lugar que a ficção se encarregou de traduzir, porque, de tão duras, certas realidades precisam ser trocadas em miúdos para um mundo interessado apenas em esquecê-las. Mas Rafaela Silva, a judoca de 24 anos que passou a infância se defendendo desta indiferença dando pernadas a três por quatro, soltando gritos e palavrões, dividida entre o respeito que desejava e as carências que a oprimiam, só precisava de um caminho. É pelas vias mais tortas e imprevisíveis que muitos deles aparecem, como se houvesse mesmo uma ordem invisível elegendo e nomeando destinos. Mas é certo que,independentemente da existência de qualquer outra força determinando o rumo a seguir, a educação e o esporte são salvadores, capazes de milagres que histórias como a de Rafaela comprovam.
Numa das inúmeras entrevistas, a atleta chora como a criança cheia de marcas deixadas pela adversidade ao lembrar o dia em que o pai, depois de muito dizer não ao pedido – por falta de condições financeiras -, comprou para ela uma sandália. Das mais simples, porém, nova. Contudo, ao deixar o presente a um canto e ir brincar (ou brigar) na rua com a molecada, foi surpreendida, na volta, com o lugar vazio. Haviam roubado. Na parte em que recorda as palavras duras ditas pelo pai, culpando-a pela falta de cuidado, soluça como se ainda estivesse diante dele e não de uma repórter, como tanta gente, maravilhada ante a façanha que acaba de realizar. São feridas que se abrem com mais força do que a torcida abriu a garganta para gritar seu nome num ginásio que tremia de emoção e fazia tremer a confiança das adversárias.
No último confronto do memorável 8 de agosto de 2016, em que enfrentava a mongol Sumiya Dorjsuren, o olhar de Rafaela não lembrava somente a menina desafiada pelos garotos da comunidade a provar que as aulas de judô aprendidas no projeto social criado pelo judoca Flávio Canto e ministradas pelo professor Geraldo Bernardes estavam mesmo sendo aprendidas. Tinha algo de feroz, talvez para traduzir a determinação dela em, vencendo aquela luta, vencer, também, a legião de fantasmas alimentados pelas adversidades e pelo preconceito. Como doeu, nos Jogos Olímpicos de Londres (2012), quando cometeu um erro e foi desclassificada. Pelas redes sociais, chamaram-na de “macaco”, de “burra”, de “vergonha da família”. Quase desiste de tudo, mas recuou diante da pergunta da psicolóloga Nell Salgado como se imaginava dali a dois anos, ela que já havia, pelas asas ganhas através do esporte, conhecido o mundo e suas muitas possibilidades? Desistiu de desistir do sonho de virar o jogo,a mesa, e acabou a primeira mulher brasileira campeã do mundo no judô, título conquistado um ano depois, no Mundial do Rio.
Enfim, o wazari que faltava no caminho da medalha de ouro aconteceu. Quando a atleta mongol foi ao chão e o público, ao delírio, Rafaela ajoelhou-se, de braços abertos, olhos fixos em um céu que só ela via, aquele que justificava a frase tatuada no braço direito: “Só Deus sabe o quanto sofri e o que tive de fazer para chegar aqui”. Depois correu e atirou-se nos braços de quem sempre acreditou nela – a irmã Raquel, a técnica Rosicleia Campos e amigos, muitos do Instituto
Reação onde trocou a agressividade pelo futuro. Só ali ela se deu ao direito de desabafar e sorrir. Aquela medalha de ouro que acariciava, enquanto chorava ouvindo o Hino Nacional ser tocado pela primeira vez nestes Jogos Olímpicos, era libertadora, um símbolo da vitória do esforço sobre a adversidade. Para o país, uma lição e prova contundente do nosso fracasso como sociedade,e nunca toma para si a tarefa de diminuir as diferenças, mas empenha-se em ressaltá-las.