23.08 23.08

 

O que fica do caso da garota austríaca que há dez anos fugiu de cela onde ficou confinada.

Silvia Bessa (texto)
Herbert Pfarrhofer/ AFP (foto)

Natascha Kampusch vai ser sempre a menina austríaca que foi sequestrada enquanto seguia para a escola e acabou confinada durante oito anos em uma cela de 5 metros quadrados improvisada no porão da casa do engenheiro de comunicações desempregado Wolfgang Priklopol. A partir dali, ela acabou maltratada e torturada psicologicamente e sexualmente aos dez anos de idade. Por tudo que viveu, tentou suicídio três vezes: uma ao cortar os pulsos; outra, ao usar peças de roupas para estrangular-se; e, por último, ao incendiar papéis sobre uma chapa para esquentar comidas. Hoje, 23 de agosto de 2016, faz exatamente dez anos que Natascha conseguiu fugir aproveitando um descuido do sequestrador ao atender um celular. Um olhar sobre o episódio e o que veio depois se faz necessário.
Ao ser encontrada pela polícia, Natascha tinha 48 quilos, quase o mesmo peso da época em que desapareceu e apresentava-se com fortes indícios de desnutrição. Estava tremendo e sem cor. Pela primeira vez, conta, o portão de fora da casa estava semiaberto. Ele havia se distanciado, tendo deixado a jovem aspirando sua BMW. Assim acabou um sequestro de 3.096 dias. Priklopol se matou naquele mesmo dia. Com 28 anos de idade, Natascha lida diariamente com seus traumas, com a necessidade de sociabilizar-se com outros jovens. Buscou conhecer um mundo do qual foi privada. Já escreveu um livro, fundou um hospital infantil no Sri Lanka, trabalhou com refugiados, viajou como muitos da idade dela, procurou aprender outros idiomas e teve até um programa de televisão.
Para minha surpresa, ontem li os relatos de Natascha sobre como foram seus dez anos após o aprisionamento. Fiquei impressionada com a revelação dela dizendo que nem sempre foi vista como vítima. Contou que recebeu mensagens de ódio, foi alvo de gritos nas ruas e até mesmo de um ataque físico. Os críticos – apesar de garantir que foram poucos e a maioria das pessoas se fez solidária – surgiram a partir do entendimento de que ela ficou rica em virtude do cárcere. “Pessoas assim não vão mudar, não importa como eu me comporte com elas”, disse. De agentes públicos, uma em especial repercutiu mal: Ludwig Adamovich, chefe de investigação do sumiço dela, conforme relatam noticiários internacionais, teria dito que o tempo em que Natascha viveu sob o domínio de Wolfgang Priklopol teria sido melhor se comparado à infância tida com a família.
Me ocorre aqui dois pensamentos: quem tem autoridade ou informação suficientes para ditar como Natascha deve lidar com seu próprio passado? Como o ser humano é capaz de revitimizar uma jovem que passou um terço de sua vida com privações básicas e sob o domínio do medo? Dou-me conta de que é prática comum e, infelizmente, não se limita à Áustria nem a casos impressionantes e de repercussão internacional. Sobre a jovem que sofreu estupro coletivo no Rio de Janeiro, todo mundo resolveu dar opinião e não é preciso buscar exemplos tão longe. Sobre os dramas alheios, julgar costuma ser fácil.
Natascha acaba de escrever um segundo livro e, nesse, ela narra as dificuldades para voltar à vida normal. “Passei por uma fase que rejeitei o mundo exterior”, diz em trecho do novo livro. Claro, começam a surgir as primeiras críticas remetendo a uma suposta superexposição por parte dela. Quando as vejo, penso que deve ser mais fácil ver por esse prisma que pensar na escrita dela como canal de desabafo, como forma de comunicar-se com um mundo com o qual ela ainda aprende a falar. Uma maneira até de responder às perguntas recorrentes.
A história de Natascha é única, singular – por certo. Mas é sempre bom lembrar que existem dramas menores e mais próximos, cujo único a ter direito de dimensioná-los é o seu dono.