Exoneração de conselheiros pelo governo de Temer reacende o fantasma de tempos sombrios no país.
Urariano Mota* (texto)
Editoria de arte (imagem)
As últimas notícias não podem ser mais claras: descumprindo norma de funcionamento da Comissão de Anistia que vigora desde 2001, Michel Temer exonerou seis conselheiros e nomeou outros 20. Entre estes, o professor de Direito Constitucional da USP Manoel Gonçalves Ferreira Filho, conhecido apoiador da ditadura civil-militar instaurada no Brasil em 1964.
É desse tempo que narro os dias dos perseguidos e torturados, como neste trecho do próximo romance:
“ ‘Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos. Primeiro trouxeram o ímã”. As páginas voavam nas mãos de Luiz do Carmo. Esse fenômeno da percepção que tudo abarca veloz, um grau máximo de concentração, eu não compreendia nem julgava possível. Muita coisa devia lhe escapar, eu me dizia. Muitos anos depois, no aniversário da Anistia, um militante socialista me contou no Rio que, todas as vezes, de medo de voar, “punha o cinto antes do pouso do avião e em poucos minutos resolvia uma página inteira de palavras cruzadas”.
– Como? – eu lhe perguntei.
– As ideias me vêm todas. Eu nem sinto o avião descer.
Em outro momento preciso, eu soube que Milton Nascimento, quando estava num carro com Mercedes Sosa, o carro estancou sobre os trilhos de uma estrada de ferro. Não conseguia dar partida, e um trem apitou na curva. Enquanto os demais não sabiam o que fazer e gritavam, Milton elevou o som do carro onde ouvia Mercedes Sosa. “Eu ia morrer escutando-a” foi a explicação de Milton Nascimento. Aquele sentido máximo, aquela concentração que vencia rápido a dificuldade, era do gênero da leitura de Luiz do Carmo na pensão. O momento do gênero da família do medo e tensão. As páginas de Cem anos de Solidão voavam. Ele falaria depois que lia Gabriel García Márquez enquanto eu lia Marcel Proust. Nisso havia brincadeira e verdade. Ele queria me elogiar com a frase, porque eu devia ser um leitor sofisticado, ao mesmo tempo que revelava a sua índole mais direta e prática. Mas eu antecipei Proust do tempo perdido porque não podia ler de imediato García Márquez, do qual todo mundo na esquerda falava. Mas o subversivo, o terrorista buscado Luiz do Carmo não me deixara, pela ânsia e posse neurótica do romance. “O amigo caçado tem prioridade”, eu me dizia. Então me refugiei no Em busca do Tempo perdido.
Quanta ironia do instante, percebo agora. Ler Proust naquelas horas tinha a mesma sublimação da queda pelas armas da ditadura. Vejo-me com o livro de capa vermelha, da biblioteca da EMETUR, No caminho de Swan. Como aquilo tinha a ver com o terror dos assassinatos, com a urgência do age ou desaparece? O que o levante às massas contra a ditadura tinha a ver com o mimeógrafo debaixo da cama? Mas eu precisava tanto ler Proust, para saber mais do que o dedo apontava, para comer Madeleine, enquanto comia sardinha enlatada com aguardente. No bar tocavam Waldick Soriano, tudo o que eu precisava, eu dizia batendo com a mão na mesa.
Mas precisávamos tanto dos nossos panfletos, que organizavam nossos desejos, enquanto os torturadores nos quebravam os ossos. Tanto que precisávamos daquele mimeógrafo, como se fosse pistola, fuzil e metralhadoras, que não tínhamos, mas saberíamos usar, tanto que precisávamos. E vinha um imenso paradoxo. Nós éramos os terroristas cujas bombas vinham a ser Marcel Proust e García Márquez. Nada que nos impedisse de envergar a farda do exército revolucionário, se a história fosse outra, se o país fosse outro, se a ditadura fosse de outra natureza. Ou se o lugar fosse outro, quem sabe o Vietnã em 1970”.
Agora, com Temer a destruir conquistas históricas, parece que esse tempo volta.
* Escritor e jornalista
Grato pela edição