Os passos das grandes cidades para ampliar a preservação aumentam o abismo que nos separa delas.
Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)
Férias em destinos civilizados como a maioria dos países da Europa continuam sendo o sonho de consumo de muita gente, sobretudo depois que as moedas estrangeiras deram pulos olímpicos e permaneceram nas alturas. Assim, uma vez lá, é natural que as diferenças saltem aos olhos e mais ainda, que elas estimulem comparações e arranquem lamentos: poderíamos, nós também, ter cidades mais atraentes e preservadas, se a política permitisse. É o lado ruim da viagem, que, inclusive, passa a pesar mais do que a mala tão logo o cidadão volta a colocar os pés no Brasil. Retornei das minhas com o mesmo sentimento, que se acentuou depois de ver o novo e incensado filme de Kleber Mendonça Filho, Aquarius. A realidade vivida pela personagem de Sonia Braga, Clara, é tão doída quanto é comovente o esforço dela para resistir ao apetite da especulação imobiliária e continuar morando no edifício construído nos anos 1940, na praia de Boa Viagem, onde criou os três filhos e dividiu com a família o melhor de sua juventude. Clara se coloca como obstáculo irremovível no caminho de uma imobiliária interessada no terreno e mesmo sendo a única moradora a permanecer no imóvel, não teme os métodos sujos dos empresários para tentar afastá-la.
Depois de assistir ao filme, muitas das cenas urbanas vistas durante os 23 dias passados entre Paris, Viena e Lisboa se somaram para justificar aquela sensação incômoda que acomete quem volta e se vê novamente, por exemplo, diante dos mesmos crimes contra o patrimônio, algo inimaginável nos três países visitados. Neste momento, essas agressões parecem maiores e mais graves, com a diferença de que a luta para combatê-las não costuma contar com a determinação de pessoas como a personagem com a qual Kleber Mendonça Filho conseguiu novamente atrair holofotes para Sonia Braga. Geralmente, as semelhanças com a ficção acabam quando o poder político se une ao econômico para fazer valer os interesses deste último.
Mesmo Portugal, que, entre os países do bloco europeu, nunca foi tido como tão rigoroso com o seu patrimônio, dá mostras de haver compensado o tempo perdido e promovido melhoras na imagem. Basta caminhar pelas ruas da “Baixa”, entre centenas de lisboetas e visitantes, para perceber a quantidade de imóveis com faixas de recuperação e o orgulho dos habitantes em oferecer aos turistas uma cidade de História e patrimônio preservados. Dizem que o ponto de partida para a nova consciência aconteceu com as transformações operadas na infraestrutura de Lisboa, que fizeram da região da Praça do Comércio e do Cais de Sodré espaços altamente convidativos, isto sem falar na parte moderna com a qual a cidade garantiu ter condições de fazer parte dos países da zona do euro. De cuidado em cuidado para se tornar a cada dia mais receptiva, Lisboa vem ganhando seguidamente o título de melhor destino da Europa, o que fica claro diante da surpreendente quantidade de turistas pelas ruas do centro, onde se ouvem sotaques do mundo inteiro. A propósito, de tão interessada em explorar as muitas possibilidades de divertimento, a maioria parece até nem levar em consideração a ainda sofrível simpatia e eficiência no setor de serviços. Taxistas são estressados, garçons são grosseiros e servem com indisfarçável má vontade, mas nada que desestimule.
Em Paris e em Viena, o verbo preservar (inclusive no sentido de limpeza) tem até status de orgulho nacional, com as más ações contra esses cuidados sendo debitadas, claro, na conta de estrangeiros (aliás, o momento para isso é dos mais propícios). Voltando de Auvers-Sur-Oise, cidadezinha onde Van Gogh está sepultado, bem perto de Paris, vi Pierre, o motorista francês, quase ter uma síncope ao volante ao ver um pouco de lixo concentrado em um pequeno trecho da rodovia. Sem dizer uma só palavra em outro idioma, superou-se na diversidade de gestos para demonstrar que aquilo era obra de gente de fora.
Tudo isso e a certeza de que insistimos em caminhar na direção oposta diminui a graça da chegada. Afinal, enquanto o cenário político e econômico agudiza a certeza de que o sonho de viajar novamente deve permanecer no armário, junto às malas, a realidade tende a rivalizar com as lembranças do que funciona, lá fora. Piorando o ânimo um pouco mais, eleições aqui não significam exatamente garantia de mudança, a gente sabe – aliás, muito pelo contrário. Porém, menos mau que, mesmo já não fazendo tanto sentido, na volta seja sempre a velha e boa esperança a nos dar as boas-vindas.