Reações surgidas ante qualquer contrariedade sinalizam que caminhamos para um individualismo sem volta.
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
Aquele sábio conselho para evitar males maiores – conte até dez, respire fundo – parece ter caído em desuso, numa época em que cada um tem resposta nada cortês na ponta da língua para disparar ao menor sinal de estranhamento. Na verdade, o velho e suburbano lema baseado em não levar desaforo para casa é que dá mostras de ser a bola da vez, para desespero de quem ainda aposta na gentileza como remédio contra as tensões do dia a dia. Um caso me chamou a atenção, nesta semana, numa padaria do bairro onde fui tomar café da manhã, hábito herdado da convivência com amigos cariocas. Eu já tinha dado início à operação saciedade quando duas senhoras aparentando estar na casa dos 60 anos entraram discutindo. A primeira se queixava porque a segunda não quis afastar o carro de modo a caber o dela, na frente do imóvel, e então estacionou atrás do veículo dizendo que só desobstruiria a saída depois de comer. A segunda teve que esperar, mas quase foram às vias de fato dentro do recinto, apesar do pessoal do “deixa disso” acudir tentando colocar panos quentes na história.
Naturalmente, com o sangue subindo à cabeça, o vale-tudo verbal para atingir o outro acaba produzindo momentos hilários como quando a agravada mandou a agravante se calar, pois nem “galega de nascença” era. Não entendendo exatamente onde estaria o pecado em uma pessoa não ser “galega de nascença”, me veio uma gargalhada repentina e inoportuna e por pouco não me engasgo com o bolo que iniciava a breve viagem garganta abaixo. No entanto, em reação ao riso fora de hora, acabei recebendo das duas olhar de completa desaprovação, como se entendessem que eu estava tentando diminuir o valor do “debate”. Esbocei, assim, um tímido pedido de desculpas, que, todavia, parece nem ter chegado a ser ouvido, e acabei salva pelo celular. O problema é que do outro lado da linha havia alguém também muito estressado, me cobrando resposta sobre certo assunto, que eu ficara de dar há quase uma hora.
Estresse, intolerância, indiferença, grosseria, tudo isso tem se somado para azedar as relações, tornando a convivência em casa e na rua bem menos engraçada e quase sempre perigosa. Nem é bom experimentar, na prática, o que na teoria já tem funcionado muito mal. Caso das discussões políticas, terreno minado onde almas absolutamente afins pisam inadvertidamente e caem em desgraça, não passando a ter mais importância laços e circunstâncias que as fortaleceram ao longo de anos e anos. Não deveria poder, mas tem sido assim porque o campo ideológico passou a ditar as regras do jogo, acima até de temas com status de sagrado – família, amores, amigos. E ainda estamos a dois passos de uma das eleições mais impregnadas de brutalidade de que se tem notícia, com morte de candidatos a prefeito e vereador em pelo menos 12 estados. Não existe orientação melhor para sair sem nem um arranhão no corpo ou na alma, neste domingo, do que votar sem alarde e passar longe de qualquer tipo de enfrentamentos.
Na maioria das vezes, são dificuldades de toda sorte e em todos os níveis que determinam os comportamentos extremamente reativos, mas em outras trata-se apenas de um traço de cultura, que os governos tentam amenizar, porque, afinal, as receitas turísticas pesam. Garçons franceses, por exemplo, nunca se mostraram tão impacientes e taxistas portugueses seguem com pavio cada vez mais curto, dando voltas e voltas com o pobre visitante incapaz de identificar qualquer caminho fora do circuito Baixa-Chiado. Quem reclama, tanto pode receber uma resposta atravessada quanto o silêncio mais constrangedor. No fim das contas, uma coisa ou outra só serve para engrossar conclusões nada alentadoras como a de que o mundo caminha para um individualismo perigoso. Se cada um tender a se achar coberto de razão, não admitindo ser contestado nem mesmo diante das justificativas mais lógicas e nobres, o primeiro a morrer será o debate e a segunda, a certeza de que o homem (ainda) vale a pena.