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Previsões feitas por gurus não devem ser tomadas como tábuas da Lei entregues pelo Senhor.

Vandeck Santiago (texto)
Edvaldo Rodrigues (foto)

A 2ª edição da Fenelivro (Feira Nordestina do Livro) acaba hoje, no Centro de Convenções, em Olinda, e a ocasião é propícia para lembrar uma profecia recebida com fanfarras em 5 de junho de 2006. “Os livros vão desaparecer. O impresso é o lugar onde as palavras vão para morrer”, dizia o analista de mídia Jeff Jarvis em artigo célebre publicado no The Guardian daquele dia. Em duas palavras ele enterrava uma tradição de mais de cinco séculos. “Precisamos matar os livros para salvá-los”, afirmava Jarvis, adiantando que os livros eram “meios ultrapassados de comunicação”. Entre outras coisas, os livros não incluíam links para acesso direto, e eram muito longos, argumentava ele. Em 2007 surgiu o e-book e muitos acreditaram que era o último prego no esquife do impresso.
Jeff Jarvis é um dos principais gurus de mídia em escala internacional. Quando ele fala, as pessoas escutam. Mas, assim como acontece com qualquer guru, em qualquer área, é conveniente não tomar suas profecias como tábuas da lei entregues diretamente pelo Senhor.
Imaginem, por exemplo, que algum editor tivesse tomado as palavras do Jeff Jarvis como verdade absoluta e deixado de investir na edição de livros. A essa altura, dez anos depois, estaria arrancando os cabelos e se lamentando por ter acreditado na pregação daquele apóstolo da revolução digital.
Porque, hoje, “duas de cada três pessoas continuam lendo seus livros principalmente em papel”, como mostra a reportagem “Quero ler em papel”, de Joseba Elola, no El País (9/10/16). “O deslumbramento que os novos aparelhos eletrônicos de leitura produziram se estabilizou. Deixaram de ser moda e se tornaram, é verdade, um fato, um fenômeno que veio para ficar”, escreve Elola. O cenário é de crescimento das vendas de obras em papel e de queda na dos livros eletrônicos. Com um detalhe relevante: também os jovens, nativos digitais, preferem o livro em papel.
A dinâmica que se nota no caso da relação livro impresso X eletrônico não é a de substituição de um meio por outro, mas a de acumulação (é o mesmo processo que se verifica em relação ao jornal impresso, com intensidade e nuances diferentes, mas isso é outra história, para outro artigo). É diferente, para dar um exemplo clássico, que já via na boca de mais de um guru digital, do barco a vapor e do barco a vela como meio de transporte de gente e de mercadorias. Aí houve mesmo uma substituição (não quero parecer ranzinza, mas preciso dizer que mesmo neste caso a mudança demorou quase um século para consolidar-se. O motor a vapor foi inventado no século 18; sua implantação no transporte aquático ocorreu no início do século 19; mas só na última década do século 19 a substituição se consolidou).
Os números que embasam a matéria do repórter do El País são do mercado dos Estados Unidos e da Espanha. Notícias semelhantes, porém, vêm igualmente de outros países – e com uma frequência tão constante que às vezes até parece que é a mesma matéria, adaptada para idiomas diferentes. No caso da Europa e dos Estados Unidos, a informação chama mais atenção entre outras coisas porque nesses países o acesso ao consumo digital dá-se em patamar mais elevado do que entre nosotros, na América Latina. É pouco provável que o quadro seja diferente no Paraguai, na Argentina, no Chile, no Brasil.
Aqui já temos estatísticas mostrando que o panorama da relação vendas de livro impresso x eletrônico é semelhante ao mencionado na reportagem do El País. O fenômeno dos eventos literários (feiras, salões, festivais e bienais) é um indicativo bastante visível disso. Temos hoje quase uma centena deles, talvez até mais, por todo o país, não apenas nas capitais e grandes cidades. Compartilho da opinião de que a função desses eventos não é promover a leitura diretamente, e sim estimular o mercado de livros. Se a previsão mencionada no início deste artigo tivesse se confirmado, todas essas feiras, salões, festivais e bienais seriam uma espécie de cemitério da palavra impressa. Em vez disso, elas são a confirmação de que a palavra impressa tem uma resiliência que a vã filosofia dos profetas do seu fim não é capaz de enxergar.