Mensagem atribuída ao papa sugere que o Dia de Finados é só mais uma forma de revelar nossa “esquisitice”.
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
A humanidade é esquisita até dizer basta e há dias em que isso fica ainda mais patente. Ontem, por exemplo, quando circulou pelas redes sociais um texto atribuído ao papa Francisco, que desde o início do pontificado fez o mundo acostumar-se com seu estilo leve e brincalhão. Sempre que precisa expor ou tratar de questões importantes para o “rebanho”, a espirituosidade se apresenta e ele fala certo por linhas alegres. Pesquisei em várias fontes, mas nada garantia ser de fato Francisco o autor e a certeza de que não era cresceu após ver a Arquidiocese de Palmas (TO) fazendo a mesma citação, já em 20 de outubro, sem identificar o dono e dizendo apenas “alguém postou”. Não importa, afinal. O que vale é o conteúdo e a reflexão proposta, ainda mais em um dia, o dos mortos, já completamente desvirtuado por essa “esquisitice”. Vamos à mensagem:
“Ser humano é estranho:
Briga com os vivos e leva flores para os mortos; lança os vivos na sarjeta e pede um “bom lugar para os mortos”; afasta-se dos vivos e se agarra, desesperado, quando estes morrem; fica anos sem conversar com um vivo e se desculpa, faz homenagens quando este morre; não tem tempo para visitar o vivo, mas tem o dia todo para ir ao velório do morto; critica, fala mal, ofende o vivo, mas o santifica quando este morre; não liga, não abraça, não se importa com os vivos, mas se autoflagela quando estes morrem…Aos olhos cegos do homem, o valor do ser humano está na sua morte, e não na sua vida. É bom repensarmos isto, enquanto estamos vivos”.
Se Francisco não escreveu, não deve ter-se importado em receber os bônus da autoria, pois parece alimentar a mesma impressão sobre o homem, cada vez mais engolido pelos apelos do mundo moderno, em tempos nos quais alma e espírito são duas palavras que definham a olhos vistos. As contradições e estranhezas expostas na mensagem estão à mostra em qualquer cemitério no segundo dia de novembro, dedicado a reverenciar a memória de gente querida: reina a exuberância do comércio que vive da “saudade de ocasião”, essa que tem data marcada para se manifestar e uma pressa incompatível com tal “saudade”: ficar ali, só o tempo que a “obrigação” exige. Outros tantos, não, preferem a balbúrdia e se acham liberados até para pequenos excessos. Devem pensar que, independentemente de onde estejam, é feriado, no fim das contas.
Na manhã de ontem, lamentei esta “descontração” excessiva e em hora errada, através de um post em minha conta, numa rede social, sugerindo que deixassem os mortos descansar. Supostamente, a condição básica, neste caso, seria o silêncio. No entanto, para a surpresa geral dos leitores daquela “linha do tempo”, alguém respondeu: “Já descansam demais, um dia de visitas é divertido pra eles”. Nem acreditei. Entre pasma e irritada, escrevi que aquilo parecia mais ida à casa da sogra, onde certa dose de desrespeito é sempre confundida com excesso de intimidade. Não se dando por satisfeito, o homem continuou: “É parte de uma tradição, faz bem a quem vai”. Ora, não são as tradições que precisam mudar, mas a forma de cultuá-las – retruquei e o sujeito não se manifestou mais. Decerto defenderia um “carnaval fora de hora” entre os túmulos, imaginando que os mortos “se divertiriam”.
Então, depois da curta conversa, me veio à cabeça a mensagem atribuída ao papa Francisco, cujo conteúdo são argumentos certeiros para demonstrar que contradições e esquisitices andam conosco o dia todo, enquanto o sono não chega e nos livra da consciência por algumas horas. A propósito do curto diálogo – o primeiro com o amigo do outro lado da tela do computador – andei pensando em enviar o pequeno texto para ele, mas sem saber com qual intenção – fustigá-lo ou melhorá-lo. E a dúvida me fez ver que todos precisamos urgentemente de conserto. Afinal, necessitados de muito mais alma do que de ego.