Se falar de morte na cultura ocidental é tabu, lembrar de perdas prematuras é tabu maior.
Silvia Bessa (texto)
Arquivo pessoal (foto)
É como se fossem mortos não reconhecidos socialmente. Como se o tempo de convívio definisse uma dor ou um amor. É como se a morte prematura tivesse sido uma solução lógica escrita pelo céu para poupar uma coletividade de um sofrimento maior – já que se eles, os mortos, tivessem tardado mais, acumulado outros anos, deixariam confidências, risos soltos, olhares, cheiros e imagens nas lembranças. Um passado ainda mais difícil de ser enterrado. Há uma maioria que crê nisso em palavras próprias, em pensamentos silenciosos ou expressões faciais. Nessa estranha lógica, melhor esquecer desses mortos, imaginam. Quem é órfão de filho bebê – que partiu quando estava ainda no ventre materno ou viveu poucos meses ou anos – sabe.
Hoje, no 2 de novembro feriado de Finados no Brasil, há uma legião de mães e pais que se reservarão quase ou solitariamente para cultuar, rezar mortos como só seus. “As pessoas parecem não considerar o luto”, diz Nathália Tabosa, órfã do filho Lucas, que morreu antes mesmo de nascer, quando estava com 32 semanas de vida na barriga da mãe. “Só entende quem perdeu e queria muito aquele filho. Isso independe de ter outro filho ou não. A dor não cessa pelo que se foi”, arremata Nathália, confidenciando sobre aquilo que sente e pouco é perguntada. Ela, que é moradora de Caruaru, Agreste de Pernambuco, perdeu Lucas repentinamente. Sofreu uma trombose que desconhecia e agonizou de Caruaru até Recife com uma hemorragia interna. Lucas não resistiu ao deslocamento completo da placenta e partiu, mudando os sonhos dos pais. Nathália quase morre junto por complicações médicas e por tristeza.
O luto de Nathália pela ausência de Lucas vem desde julho de 2012. No ano seguinte, ela teve a alegria de engravidar novamente de uma menina, cujo nome dado foi Vitória. Nathália adora passear com a filhinha serelepe e de olhos claros e não raro é abordada pela típica pergunta: “Só tem ela?”. Lucas, o filho que se foi e ela chama de anjo, é sempre lembrado. Nunca Nathália deixa de mencioná-lo. “Não consigo responder que só tenho ela. Se eu calasse e não falasse dele, era como se eu enterrasse de vez a memória do meu primeiro menino”, conta Nathália. De pronto, uma inquietação se faz no interlocutor. Algo esperado. “Não, não há naturalidade nas pessoas quando respondo assim. As pessoas recriminam. Acham que foi besteira, passado”, acredita ela. “Para todo mundo eu tenho só uma filha. O outro filho só existiu para mim e para meu marido Arnaldo”, resume para então arrematar com a frase que justifica duplamente as orações de hoje: “Meu filho permanece vivendo em nós, em mim e meu marido Arnaldo”.
Como jornalista, mulher e mãe, conheci dezenas de outras mulheres que sofreram abortos inesperados de filhos desejados ou que amargaram o sofrimento por uma perda jamais recomposta ou substituída por outros filhos. Sempre impressionou-me notar que o passar dos anos faz com que essas mulheres continuem numa espécie de osmose visceral a lembrar dos seus filhos. A maioria faz questão de contar cada um dos dedos quando relata o número de filhos que já teve. É uma prática que independe de classe social, condição financeira ou educacional.
Lembro que certa vez conheci uma senhora no município de Barreiros. Ela morava em uma das únicas casas que ficaram em pé numa rua coberta por lama após uma enchente avassaladora. Sentei num pedaço de madeira, ela em outro para a entrevista. Estava com roupa puída, com olhos vermelhos como se tivesse dormido pouco. Comecei as perguntas do começo da vida dela, passei pelas dificuldades e, por fim, pelos filhos que teve. Pausadamente, contou os filhos que perdeu na barriga e os filhos que perdeu depois de nascidos. Ao falar desses, citou os nomes escolhidos para cada um. Acho que fazia décadas que havia enterrado em um desses cemitérios que estarão lotados no dia de hoje, de Finados. Jamais os esqueceu, ainda que a vida deles tenha sido mais curta do que o esperado.
Se falar de morte na cultura ocidental é tabu, lembrar de bebês mortos é ainda mais evitado. O que há é uma tendência de se querer ignorar essas mortes, o que para os enlutados torna a convivência com a perda ainda mais dolorida. Para mim, Nathália e a senhorinha de Barreiros são parte de um universo que precisa ser estudado e compreendido.