Quando envelhecem, as revoluções correm o risco de ficar parecidas com aqueles a quem derrotou.
Vandeck Santiago (texto)
Rodrigo Aranguá/ AFP (foto)
Leio no noticiário que o ex-guerrilheiro sandinista Daniel Ortega elegeu-se presidente da Nicarágua pela quarta vez – a terceira consecutiva. Desta vez ele disputou tendo a própria mulher como vice, Rosario Murillo. Observadores internacionais não puderam entrar no país para acompanhar as eleições. O único partido não alinhado com o governo não obteve licença para concorrer ao pleito. Ortega ficará no cargo até 2021.
Esta história me faz lembrar outra, contada pelo escritor Luiz Arraes no livro Tempo – o de dentro e o de fora (7letras, 2008). Em 1975 Moçambique tornou-se independente de Portugal e o novo presidente moçambicano, Samora Machel, convidou dois brasileiros para a tribuna de honra da posse: Luiz Carlos Prestes, o líder comunista, e Miguel Arraes, governador pernambucano deposto pelo golpe de 1964 e que estava no exílio. No dia seguinte, Arraes foi tomar café com Samora Machel, que lhe apontou a rica prataria da sede do governo e disse:
– Pois é, Arraes. Vamos ver se isto toma conta de nós ou nós tomamos conta disto.
A prataria simbólica do poder exerce uma atração capaz de contaminar tanto quem fica sentado no trono quanto quem lhe rodeia. Às vezes, o governante que não pode mais disputar um novo mandato, indica alguém de sua extrema confiança para concorrer, como fez Lula com Dilma Rousseff. Às vezes, para tirar do caminho o impedimento legal de candidatar-se novamente, modifica-se a legislação. Em 28 de janeiro de 1997, por exemplo, a Câmara de Deputados aprovou a emenda constitucional da reeleição por 336 votos a favor, 17 contra e seis abstenções – permitindo que Fernando Henrique Cardoso concorresse e fosse eleito para um segundo mandato. As motivações são variadas, mas os fatos mostram que nunca é por patriotismo ou por querer radicalizar na implantação de medidas favoráveis ao povo. É o fascínio do poder que exerce a atração.
Mas estávamos falando da Nicarágua, de Daniel Ortega e do sandinismo. Para quem estava por volta dos 20 anos em 1980, essas três palavras podem causar impacto. Porque aconteceu na Nicarágua a última revolução digna desse nome, na América Latina. O Brasil estava sob o jugo de uma ditadura e os jovens brasileiros que despertavam para a política naquele momento acompanhavam com interesse o movimento dos guerrilheiros nicaraguenses, agrupados em torno da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional). Contra eles havia a ditadura de uma família que se encastelava no poder havia 45 anos, os Somoza, responsável por uma série de atrocidades e perseguições.
Em março de 1979 os sandinistas lançam a ofensiva final. O governo dos EUA defende que a OEA (Organização dos Estados Americanos) envie tropas para conter os guerrilheiros, mas a maioria dos países que compõem a organização se posiciona contra. O ditador Anastasio Somoza deixa o governo e foge para o exílio. Deixa na presidência um aliado seu, presidente do Congresso, na esperança que ele obtenha uma conciliação com a FSLN. Em vão. Os sandinistas avançam e tomam o poder, em julho daquele ano.
Um fato positivo é que os sandinistas não implantam uma ditadura estilo cubano; marcam eleições presidenciais. Em 1984, Daniel Ortega é eleito com 67% dos votos. Apesar de toda a pressão da época, o jornal mais importante do país, La Prensa, que fazia oposição ao governo, continuou circulando. Em 1990 uma candidata de oposição, Violeta Chamorro, dona do La Prensa, é eleita presidente – e toma posse sem problemas, governando até o fim do mandato.
Daniel Ortega só retornou à Presidência em 2006. Reelegeu-se em 2011 e novamente agora. Assim como ocorreu no Brasil, na Nicarágua também se aprovou uma lei que permitiu a reeleição. O país cresceu 4,9% no ano passado; e 4,6% no primeiro semestre de 2016. A pobreza, que em 2009 era de 43%, caiu para 30% em 2014. Ao mesmo tempo, há restrições à liberdade, casos de corrupção e concentração do poder em torno de um grupo – agora, um grupo comandado por uma dupla familiar.
As revoluções deveriam eternizar-se enquanto jovens. Quando envelhecem, infelizmente elas começam a parecer com aqueles a quem derrotou.