Documentário sobre o pintor pernambucano Cícero Dias empolga a crítica no Rio e chega ao Recife.
Luce Pereira (texto)
Greg (arte sobre foto)
Documentários são biografias que chegam ao espectador de forma muito mais atraente, sobretudo quando construindo a história, feito se costura delicada colcha de retalhos, está um especialista nesta arte. Coube a Vladimir Carvalho, que tem na carreira uma série de bem-sucedidos trabalhos, lançar luz sobre vida e obra de um dos maiores pintores brasileiros de todos os tempos e excepcional não apenas pelo legado, mas, também, pela coragem de desafiar uma terra e uma época excessivamente conservadoras. Cícero Dias, o compadre de Picasso, chega aqui depois de fazer bonito na estreia carioca, sábado último, com direito até ao Hino de Pernambuco, terra do pintor, sendo cantado por um grupo, no fim da sessão das 19h.
Lamentavelmente, aqui não foge à regra do descaso nacional e quase sempre muitos dos grandes nomes das artes só têm a importância resgatada vários anos depois da morte – vale dizer, não porque o poder público resolva investir na tarefa, como se assim fizesse uma espécie de mea-culpa: o universo há que permitir que o talento e a teimosia de alguém cruze com a sorte, em dado momento, para então nascerem os projetos destinados a revelar a dimensão dessas pessoas. Foi assim com o cineasta, que viajava a Paris, em 2005, para a exibição dos seus trabalhos no Ano do Brasil na França, quando leu numa revista de bordo sobre retrospectiva do artista (1907-2003) na cidade. Lá, conheceu três das pessoas que acabariam levando-o para o caminho essencial da obra de Cícero – a mulher, Raymond, a filha Sylvia e o marchand romeno Jean Boghici, falecido em 2015. Os fios da história, que já começou a ser vista em cinemas de todo o país, foram reforçados com depoimentos de outros mestres como Francisco Brennand e Ariano Suassuna, o primeiro com o crédito de ter ajudado nas largas passadas de Cícero desde o Engenho Jundiá até Paris, onde morreu.
Aliás, das três viagens que fez ao Recife (além das duas a Paris), o diretor paraibano deixou a última para o lugar onde tudo começou – o Engenho Jundiá, em Escada, município da Zona da Mata. No entanto, saiu chocado com a decadência em que o local se encontra, quando, segundo ele, a paisagem e a casa que viram a infância e os primeiros desenhos de Cícero deveriam fazer parte de um centro cultural. Deveriam, mas entre esse verbo e a sensibilidade do poder público para a necessidade de zelar por esta riqueza do país existe um oceano maior do que aquele que Cícero atravessou para se tornar, na França, além de respeitado e reconhecido, o compadre de Pablo Picasso, de quem tinha até o telefone em seu nome (a fim de evitar o assédio dos fãs). Diferentemente do espanhol, no entanto, não viveu nem a satisfação de ver as origens preservadas. Fez a última viagem ao Recife em fevereiro de 2002, para o lançamento do livro Cícero Dias: uma vida pela pintura, de autoria do jornalista Mário Hélio, e tinha estado na cidade dois anos antes para a inauguração de uma praça com seu nome, mas em nenhuma foi-se despedir do engenho. Melhor seria guardá-lo distante dos atuais tempos de ruína.
Para não ser apenas outro trabalho sobre um grande nome da pintura brasileira, o documentário de Carvalho ousa e vai muito além, transformando-se em “empolgante viagem pelo mundo das artes plásticas, do comportamento social brasileiro e da política mundial de boa parte do século 20”, como escreveu o crítico e curador de cinema Celso Sabadin. A trajetória de Cícero bem que merecia uma obra à altura: Escapou do getulismo, do nazismo, dos ultraconservadores narizes torcidos (na própria terra natal) por sua opção pelo Modernismo, da saudade de suas raízes e conquistou, além de amigos notáveis em todos os campos das artes, o mundo – que ele viu, e começava aqui. Se for over cantar o Hino de Pernambuco nas sessões programadas para o Recife (Cinema São Luiz, de quinta a domingo das 15h20 às 19h30, dependendo do dia), o público pode ao menor sair espalhando por aí que sentiu uma pontinha de orgulho. Sejamos justos: um grande orgulho.