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Visita a Auvers-Sur-Oise, na França, revela o jeito simples de viver de um dos maiores gênios da pintura.

Luce Pereira (texto)
Editoria de Arte sobre foto (imagem)

Paixões não se explicam. Logo, não há como justificar a alegria que boa parte do mundo sentiu, nesta semana, diante do anúncio de que fora descoberto um caderno com desenhos inéditos do pintor holandês Vincent Van Gogh, o impressionista que mesmo morto há 126 anos continua tendo vida e obra mantidos no centro dos interesses de quem ama arte. Digamos que as telas não consigam tocar significativamente – o que parece pouco comum – mas é muito provável que ao menos a história do artista sensibilize, pela relação visceral com o trabalho e as turbulências íntimas. Num desses momentos cortou a orelha, consequência de uma das muitas brigas com o também pintor Paul Gauguin e, no auge das tempestades emocionais, acabou se suicidando com um tiro, em 29 de julho de1890, no quarto do sobrado onde passou os últimos três meses de vida, na cidadezinha francesa de Auvers-Sur-Oise, a pouco mais de 30 quilômetros de Paris. É lá que está sepultado, num túmulo sem qualquer distinção, ao lado do irmão Theo, que lhe deu provas diárias de amor e cuidado profundos. Estavam um para o outro como Vincent para seus pincéis encantados.
Em um domingo de setembro último, o céu seguia azul como nas telas em que Vincent retratou os dias quentes de verão vividos no Norte da França. E enquanto o carro rodava pela estrada impecável – sem movimento nem defeitos –, rumo a Auvers-Sur-Oise, eu ia imaginando o que aquela paisagem havia produzido de tão especial no espírito do artista, pois o levou a uma produção tão frenética quanto digna de reverências. Num espaço de tempo ínfimo, pintou 78 das mais de 800 telas, com destaque para A igreja de Auvers, trabalho concluído 24 dias antes de sua morte.
Passava um pouco das 10h e quase não se via morador transitando. Na via principal, circulava um carro ou outro e não se notava nenhum exagero publicitário em torno dos lugares por onde o gênio da pintura passou cotidianamente, naquelas últimas três semanas. Muito pelo contrário. Apenas uma placa discreta colocada na frente do sobrado indicava que ali estava o endereço exato, sendo necessário seguir pela rua lateral até alcançar o acesso ao edifício. No pátio, um restaurante de bom tamanho e ambientação agradável, ainda de portas fechadas; à frente, uma escadaria de madeira relativamente alta. No primeiro piso, onde funciona a loja do pequeno museu em que o imóvel foi transformado, uma moça (ora guia, ora vendedora dos souvenirs) dava explicações em francês e inglês para um pequeno grupo de turistas.
Juntei-me a eles e subimos pela escada escura para o próximo pavimento, onde estava o quarto de Van Gogh. Cama, cadeira, um pequeno lavatório, tudo iluminado apenas por uma clarabóia. Tudo de uma simplicidade quase franciscana. Passei minutos parada, imaginando o cenário do último dia, enquanto o grupo descia para ver a exibição do documentário sobre o famoso inquilino – emocionante, aliás. Achei que só choraria ali, mas faltava a visita ao cemitério. Andar pelas ruazinhas pacatas e silenciosas de Auvers-Sur-Oise é como caminhar sobre o passado. Aqui e ali, em pequenas peças de ferro colocadas pela prefeitura, ao longo do caminho, lê-se “Vincent” como se fosse a assinatura do próprio. A subida até o cemitério, sob um sol escaldante, cansa, mas o visitante vai imerso em mil pensamentos, aproveitando a sombra de árvores imensas, já vestidas das cores do outono.
Do velho cemitério, avistam-se as terras que circundam a cidade. Também lá, nenhuma referência especial à localização dos túmulos de Vincent e do irmão, ninguém para mostrar onde ficam. Mas nisto a prefeitura está certa: ao menos a morte deve igualar as pessoas. Escolhi começar a busca pela lateral esquerda e fiz bem, pois na metade do percurso lá estavam os dois jazigos, rústicos recobertos por uma folhagem ressecada e velha, identificados apenas pelos nomes, ano de chegada e partida. Impossível, então, não refletir sobre o sentido da vida. Impossível não retornar a Paris com um certo desencanto.