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Cronista urbano se reinventa após internação por conta do álcool e está mais produtivo do que nunca.

Marcionila Teixeira (texto)
Peu Ricardo/DP (foto)

É hora do almoço. As mesas internas do restaurante estão cheias. Miró, o cronista urbano, passeia entre elas. Retira cuidadosamente pratos e copos esvaziados pela clientela. Leva tudo para a cozinha. Volta. Repete o movimento. Em uma mesa do canto, uma mulher degusta uma cerveja gelada e lê o jornal. Do outro lado, o artista é reconhecido como Miró da Muribeca. A fã logo lhe compra um livro.
Há seis meses, Miró está internado em um espaço de reabilitação para dependentes químicos, o Instituto Raid. Pela primeira vez, aos 56 anos, faz terapia para entender melhor sua relação com o álcool. Após evoluir no tratamento, conquistou o direito de passar o dia fora, desde que volte antes das 22h para a clínica.
Das 11h às 14h, Miró se dedica à tarefa de “ajudar” no Restaurante Mamulengo, na Praça do Arsenal, no Bairro do Recife. O estabelecimento pertence a um amigo. O mesmo que certa vez lhe abrigou em um momento de grande necessidade. Entre garrafas de bebida alcoólica e pratos, Miró tem vendido mais livros que nunca. Em dois meses, ganharam outros donos 400 publicações de sua autoria. Certa vez, um grupo de turistas de São Paulo reconheceu Miró no restaurante e levou para o Sudeste vários livros como presentes. Sóbrio, o artista está mais focado, empreendedor, inventivo.
Miró morou no câncer alcoólico do Recife – como chama a concentração de bares no bairro da Boa Vista – sem usar bebida alcoólica durante dez meses. Mas, em um dia de Natal, teve sua última “recaída”. Agora, trabalhando de perto com diversas bebidas, sente viver uma nova experiência desafiadora junto ao álcool, reponsável por suas várias mortes. “Na terapia, descobri o que não quero mais fazer. Não quero mais beber. Não quero mais esquecer do que fiz ontem”, reflete.
Miró não está mais delirando. No passado, após quatro meses embriagado e sem comer, sozinho em um prédio condenado da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes, seu vômito ganhou a cor verde e transformou-se em um perigoso jacaré pronto para lhe devorar. Foi quando pediu socorro aos amigos. Acabara de perder a mãe, sua única referência de família. Entrou em desespero.
Agora os acontecimentos andam favoráveis. Amanhã Miró embarca para o Rio de Janeiro para participar do Salão do Livro. Apresenta-se em uma mesa-redonda e lança algumas de suas publicações. No dia 26, estará na Balada Literária, em São Paulo. “O pessoal de São Paulo terá oportunidade de ler, ouvir e assistir Miró. Vou lançar CD com 16 textos falados, além de livros e curtas feitos comigo”, ressalta.
Nos dias 3 e 4 de dezembro, participa da Feira do Livro, no Museu do Estado, na Rui Barbosa. Lá irá lançar 20 para pensar um pouco. Uma junção de 21 crônicas curtas, reunidas durante o internamento no Raid. Uma, brinca, vem como bônus. Como foram distribuídas em folhas de papel ofício soltas, podem ser presenteadas individualmente também para pessoas queridas. Quando convidado para palestras, não cobra cachê. Ao invés disso, vende dez livros Miró até agora, cada um por R$ 30, ao contratante.
Miró espera receber alta do Raid o mais breve possível. Planeja usar o dinheiro do auxílio-moradia repassado pela Prefeitura do Recife no pagamento do aluguel de uma pensão na Rua da Aurora. Pensa até em amar de novo, algo que não faz há oito anos. Pergunto se o artista se acha mais reconhecido hoje nas ruas. As redes sociais movimentadas por amigos, diz, têm ajudado. Ele diz não ter muito manejo com as ferramentas virtuais. Prefere a performance da rua, junto de seus leitores, admiradores, anônimos. O celular mesmo só serve para ligar e atender. No final do texto, resolvo puxar uma das crônicas do 20 para pensar um pouco. Deixemos, então, para Miró a tarefa de fechar esta história, que é dele: “O lençol da vida me jogou da cama um céu azul espalhafatoso e disse-me: vai, Miró, ser alegre na vida”.