Queria chegar na caixa de correspondências e encontrá-las, mesmo recheadas de notícias caducas.
Luce Pereira (texto)
É a própria vida que obriga a enxergar as mudanças de frente. Mesmo aquelas que parecem não ter poder para afetar a rotina, batem à porta num dia qualquer para lhe dizer “os tempos (já) são outros”. E não importa se isto parece bom ou ruim. Falo a propósito de uma necessidade recente, que me obrigou a andar pelo bairro em busca de um bloco para escrever cartas. Sim, os tradicionais mesmo, folhas com pauta, papel sem graça. Fui a três lugares e em cada um os vendedores me olharam como se eu estivesse pedindo pergaminho real, daqueles que os emissários esticavam na frente da multidão para anunciar alguma ordem de sua majestade. Foram unânimes em dizer que a loja não trabalhava com tal artigo havia um bom tempo, pois “ninguém mais, hoje, escreve cartas”, só se comunica “de forma moderna” Reconheço que tenho alguma dificuldade em me sentir “ninguém” ou em desacordo com a época em que vivo, mas ponderei, ao sair para novas buscas: de fato, assim devem se sentir pessoas que resolvem voltar ao mais breve contato com hábitos nem tão velhos.
Quando uma grande amiga mudou-se recentemente com a família para a espanhola Palência, pediu-me expressamente que nos comunicássemos através de cartas escritas à mão. Queria chegar na caixa de correspondências do atual endereço e encontrá-las, não importando se recheadas de notícias já caducas. Na verdade, quando se coloca o coração na tarefa de traduzir fragmentos de vida o resultado é afeto em estado puro. Acho que minha amiga pressente que conversas assim podem revelar mais da alma do que dos fatos e eles significam muito pouco diante da possibilidade de sentir, no desenho de cada letra, a emoção e a esperança de nada se perder. Mesmo com um oceano no meio.
Confesso que o desejo de receber cartas escritas à moda (quase) antiga me surpreendeu. Mas, logo depois, ela me diria sobre a brincadeira de colecionarmos uma série de impressões acerca de tudo, como faziam escritores e pensadores quando a “modernidade” ainda não havia tirado deles o prazer de inventar mundos. Faríamos de conta que o futuro se interessaria por nossos devaneios, em torno dos quais se juntariam multidões desejosas de saber mais e mais. Quero esclarecer que sempre tenho dificuldade em achar alguma ideia dela ruim, porque presto muita atenção em quem não deseja da vida nada além do direito de bebê-la gole por gole, sem perder uma só gotinha. Minha amiga nasceu com um sorriso quase incontrolável, pois é assim mesmo o sorriso dos agradecidos para sempre – e é também assim que conseguem fazer falta e diferença.
Claro, voltarei às buscas pelo papel das cartas e certamente o encontrarei em lojas especializadas. Mas já não é isso que primeiro me vem à cabeça, quando penso na tarefa: para brincarmos de gente que terá importância num futuro a perder de vista, preciso de inspiração.
E como encontrá-la, com o Natal tão perto? Estranhamente, dezembro é um mês que me deprime, porque, bem ao contrário do que deveria, realça a pobreza nos pobres e o excesso de riqueza nos ricos; como se aos primeiros estivesse reservado apenas o espetáculo das carências e ausências.
Penso que não se pode iniciar uma correspondência assim, sob o peso de desigualdade tão terrível, mas, também, o futuro não merece uma “obra” que não seja fiel ao sentimento de quem escreve. No final das contas, é sempre a sinceridade que torna tudo tão surpreendentemente especial. Por isso, penso que minha primeira carta possa começar assim:
“Querida flor da alegria, aqui faz calor, como sempre e cada vez mais, no entanto, ameaça cair uma chuvinha e dizem que o próximo ano será melhor. Tenho minhas dúvidas, porém, mais do que elas, uma certeza: estamos vivos e é apenas isto que importa”.