29-11

O encontro imaginário entre uma jovem do MST e pesquisadores da Universidade de Stanford.

Vandeck Santiago (texto)
Juan Barreto/ AFP (foto)

Os debatedores criticavam a forma como a imprensa cobre os movimentos sociais. De repente levantou-se uma jovem do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e cravou a estaca no coração do dragão. “Antes de querer que a imprensa mude”, disse ela, “deveríamos investir na formação de leitores capazes de ler criticamente as notícias”. Fiquei tão surpreso com a profundidade do raciocínio da garota que nunca o esqueci, apesar de já fazer anos da realização do debate – foi em amplo e bem cuidado auditório da Faintvisa (Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão); eu estava lá para falar sobre as Ligas Camponesas, a convite do amigo e cientista político Hely Ferreira.
Agora, deixemos o simpático município da Vitória de Santo Antão (55 km do Recife) para trás e vamos ali na Universidade de Stanford, uma das cinco mais prestigiosas dos Estados Unidos. Um estudo feito lá, e divulgado semana passada, constatou que os jovens norte-americanos não são capazes de diferenciar no noticiário online o que é notícia falsa e o que é notícia verdadeira… A pesquisa foi realizada durante 18 meses; aplicou testes para 7.804 estudantes (ensino médio e universitário), em 12 estados dos EUA.
Atentemos para os detalhes: estamos falando da nação mais rica do planeta e de uma faixa etária que tem acesso constante a informações, via celulares, tablets, PCs… Para a maioria deles, não faz diferença o site que publica a informação, se a notícia não tem fontes conhecidas, se o fato anunciado parece absurdo, se as evidências relatadas não confirmam o enunciado – a maioria vai acreditar no que está lendo, e muitos vão repassar para outros colegas.
Aquilo que uma garota do MST dizia há anos, com base na sua experiência de vida, replica lá do outro lado do hemisfério, entre uma moçada que tem um acesso a informações que nenhuma geração anterior teve: quando o leitor não é capaz de avaliar o que vê, ouve ou lê, qualquer mentira pode ser recebida como verdade. As consequências disso podem vir logo no curto prazo. Na recente disputa eleitoral dos EUA, por exemplo, o candidato eleito Donald Trump divulgou, ele próprio, diversas informações que não eram verdadeiras. Em várias entrevistas à imprensa, inclusive ao vivo, na TV, quando o entrevistador dizia que aquele dado divulgado por ele não era verdadeiro, Trump respondia: “Peguei na internet”…
Os pesquisadores da Universidade de Stanford não se contentaram em demonstrar quão grave é a ignorância na leitura das notícias online. Criaram um programa de aulas destinado a fazer aquilo que a garota do MST, em Vitória de Santo Antão, defendia há anos: dar capacidade crítica aos leitores. O programa busca fornecer instrumentos aos alunos para avaliarem a veracidade das informações. O currículo foi disponibilizado na internet e está sendo utilizado por diversas escolas. No momento em que escrevo, já foi baixado mais de 3,5 milhões de vezes. (Os jornais deveriam criar um programa semelhante, para divulgação regular, inclusive nas escolas.)
Se o leitor tem capacidade crítica, ele é capaz de ver os interesses que há por trás das notícias, as omissões, a seletividade (por que quando se fala do seu Zé o tom é implacável e quando se trata de seu João até as vírgulas são generosas?…). Durante a ditadura no Brasil, os jornalistas tinham formas de driblar a censura que os censores nem desconfiavam. Prendiam o jornalista Carlos Garcia, ou o político Marcus Cunha – e aí você escrevia: “A polícia prendeu ontem o perigoso subversivo Marcus Cunha…”. A notícia publicada às vezes garantia a vida da pessoa detida – dava-se o paradeiro dela; não era mais possível matá-la ou incluí-la no rol dos “desaparecidos”. Se você escrevesse apenas o nome do preso, sem caracterizá-lo como “subversivo”, a notícia poderia ser cortada pelo censor – e ficávamos sem a confirmação do paradeiro da pessoa. O leitor crítico sabia ler nas entrelinhas; e todos se mobilizavam para libertar Garcia ou Cunha.
A situação hoje é bem mais complexa – tanto que não diz mais respeito apenas ao jornalismo, mas também à educação. E não só aos que já são consumidores de informação, também àqueles que serão amanhã – nossas crianças. Imprensa e escolas têm pela frente o desafio de serem protagonistas na luta contra as informações falsas – formando o pensamento crítico e divulgando informações corretas.